quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Discussões em torno da "dogmática jurídica"


Tenho mantido, por meio eletrônico, um diálogo bastante proveitoso com o Diego Bomfim, amigo aqui de Fortaleza que fez mestrado em Direito Tributário na PUC/SP e, paralelamente a tantas outras leituras, e a uma intensa advocacia na capital paulista, dedicou algum tempo para ler meu "Por que dogmática jurídica?".
Tendo sido aluno do Prof. Tércio Sampaio Ferraz Jr., ele tinha posição um tanto diferente da que defendi no livro, e por isso mesmo o debate foi interessante, sobretudo pela qualidade das observações que ele fez.
Com a sua autorização, resolvi publicar, aqui no blog, texto que ele elaborou, no qual faz uma análise crítica do meu livro.
Afinal de contas, se pretendo que se estude o direito de forma "não dogmática", não posso pretender que as opiniões contrárias às minhas sejam omitidas ou escondidas, para que as minhas prevaleçam por eventual desconhecimento das pessoas a respeito das alternativas. Seria como o biólogo do Século XIX que pretendesse esconder as idéias de Pasteur para que as pessoas não descobrissem ser falsa a teoria da geração espontânea...
O texto, que está colado logo adiante, veio acompanhado da seguinte mensagem:

***

São Paulo, 19 de agosto de 2009
Caro Hugo,
Segue um pequeno texto crítico elaborado após proveitosas e reiteradas leituras de sua obra “Por que dogmática jurídica?”
Como já havia te dito, uma das qualidades do texto é a de ser objetivo, permitindo que o leitor, no contexto de império do tempo em que vivemos, possa ter o raro prazer da releitura sem culpa.
O trabalho me impressionou já pelo título e pela, se é que assim eu poderia chamar, audácia. Penso, mesmo não adotando integralmente suas conclusões, que a discussão quanto ao emprego da expressão é altamente recomendável e permite, aos que a utilizam, empreender um processo de elucidação, aperfeiçoando-a e objetivando o exato sentido em que a utilizam. Ou seja, o trabalho é extremamente útil, seja quanto ao convencimento a respeito da incongruência da expressão ou mesmo quanto ao cuidado que se deve ter ao empregá-la, se assim desejar o cientista.
Espero que minhas ponderações possam ser úteis ao desenvolvimento futuro do tema e que gere, ao menos em parte, reflexões tão proveitosas como as que me foram permitidas pela leitura do texto.
Os comentários foram sendo escritos desde a primeira leitura e de acordo com o desenvolvimento da leitura, razão pela qual, por vezes, existem dúvidas, ponderações e críticas que, páginas seguintes, são esclarecidas ou, mesmo, refutadas por você. Mantive o texto com essa linha para que você possa ter uma ideia dos efeitos que são gerados no leitor, capítulo por capítulo.
Seguem os comentários que, pela força do hábito, saíram formais e distantes, mas que, no fundo, só possuem um objetivo: contribuir!
Um abraço,
Diego Bomfim

Breve análise crítica de Por que dogmática jurídica?, de Hugo de Brito Machado Segundo (MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Por que dogmática jurídica? Rio de Janeiro: Forense, 2008).

1. Quanto à Introdução

Logo na introdução do livro é possível identificar a assunção clara do posicionamento de crítica à expressão dogmática jurídica, confirmando o que o leitor imagina quando tem contato com o título da obra. Trata-se um texto voltado a defender a incongruência da expressão.

Ora, se o texto tem esse claro escopo não há equívoco em se centrar, mesmo que mediatamente, a uma discussão terminológica. Pensamento que o autor parece, pelo menos em um primeiro momento, refutar.

Não é verdade que uma discussão terminológica seja “meramente terminológica”, já que, tomando-se o triângulo semiótico de Husserl, há sempre uma relação entre o suporte físico, o significado e a significação.

Assim, o emprego de um suporte físico equivocado (tendo em vista o significado correspondente predeterminado) pode gerar no intérprete significações incongruentes, causando um ruído na comunicação.

Tanto não é irrelevante uma discussão terminológica que na seguinte passagem é possível identificar que, em última análise, o livro trata de discutir os possíveis efeitos danosos que a utilização do termo pode fomentar:

“examina-se também, se a questão é meramente terminológica, sem maior relevância, ou se o uso da expressão pode trazer efetivas vantagens à precisão da linguagem, conseqüências impróprias e repercussões indevidas” (1). (os grifos não constam do original).

O termo empregado é muito importante em um texto científico, sendo relevante que haja sua clara definição, estipulativa ou não.

O pano de fundo do livro, portanto, pode ser tomado como terminológico, sem que haja um preconceito de ser meramente terminológico, vez que, como já afirmei em outra oportunidade, e reitero aqui, “a discussão terminológica dos termos empregados pela Ciência do direito pode, inegavelmente, influenciar na decidibilidade dos conflitos normativos”(2).

Talvez, a referência, feita pelo autor, ao fato da discussão não ser meramente terminológica tenha o condão de, justamente, afirmar de que se trata de uma discussão terminológica, mas que essa discussão gera efeitos outros que não residem apenas no emprego desta ou daquela expressão. É dizer: o emprego desta ou daquela expressão é relevante no âmbito de um discurso científico. Se essa foi a intenção do autor, penso que caberia um ou dois parágrafos de elucidação da questão. Se não, acho que há uma crítica interna realizada pelo próprio autor quanto ao objeto de todo o trabalho.

2. Quanto ao Capítulo I

O capítulo se inicia com informações sobre a fuga a respeito da definição precisa do que seria dogmática por parte de diversos “autores de textos jurídicos” (p. 4).

Nesse ponto, uma perplexidade positiva. Essa informação sempre passou ao largo de minhas reflexões (3). O autor descobriu o que Alfredo Augusto Becker chamaria de um fundamento óbvio.

Uma pequena observação que pode ser feita diz respeito à inclusão de Juan Ferreiro Lapatza dentre aqueles que se filiam à corrente autonômica do direito tributário. É que, apesar de transparecer essa ideia na passagem citada, o referido autor na mesma obra retoma o discurso, afirmando pela inexistência de autonomia científica do direito tributário.

De qualquer forma, para que a análise pudesse continuar, o autor – mediante inferência – assevera que por essa expressão estão os autores a se referir a um estudo descritivo das normas jurídicas em vigor. É o que se percebe quando afirma:

“como se trata da descrição de normas postas, o estudioso teria que delas partir necessariamente, não as podendo modificar. Seu papel seria descrever o direito que é, e não aquele que deveria ser, daí por que as normas seriam dogmas que não se poderiam modificar”. (p. 7).

Ora, com a passagem do texto, há a geração de muitas inquietações no leitor (pelo menos foram esses os sentimentos que eu tive): será, então, que na concepção do autor a função da ciência do direito é descrever o direito positivo como ele deveria ser? Se assim o fosse, quais seriam os parâmetros que o intérprete deveria acolher? Ou, o direito descrito, na óptica de quem, deve ser encarado como aquele que deve ser?

Sem entrar nessa discussão, o autor, nesse capítulo, centra a definição do conceito de dogmática que será utilizado como referencial para as críticas, afirmando que:

“diz-se dogmática a ciência do direito positivo, porque, nela o cientista deveria partir das normas vigentes, tendo-as como dogmas, vale dizer, como algo indiscutível e inquestionável”. (p. 11).

Cogita-se, nesse ponto, se o autor trabalha com a divisão entre enunciado e norma, desdobrando o raciocínio a respeito da possibilidade dessa dicotomia permitir um uso congruente da expressão dogmática jurídica. Cogita-se: será que essa dicotomia não salva a expressão das críticas que começam a ser formuladas pelo autor?

Ao final do capítulo, o texto oferece respostas aos questionamentos surgidos com a leitura da introdução referentes à ser ou não terminológica (ou meramente terminológica) a discussão travada.

Com as citações de Pontes de Miranda e Michel Villey, o autor parece responder: trata-se, sim, de uma discussão, mediatamente, terminológica, desde que se afaste o preconceito de ser uma discussão meramente terminológica.

Isso porque afirma:

“... é essa mesma precisão de linguagem, exigida quando se faz ciência, que nos impele a examinar se, para traçar a diferença entre as duas formas de estudo do direito anteriormente apontadas, é correto dizer-se que uma delas, a voltada para um determinado direito positivo, ou para uma parte dele, é dogmática”

3. Quanto ao Capítulo II e Conclusões

O capítulo se inicia com uma abordagem a respeito da evolução do que se deve entender por um estudo científico, centrando como premissa a provisoriedade do conhecimento, mesmo o científico, e tomando a teoria da verdade como correspondência (4) como premissa.

Nesse ponto, há a união de duas premissas: (i) a verdade se encontra por correspondência entre a imagem (uma linguagem) e o objeto (o real, que também pode ser tomado como linguagem); e (ii) a verdade é uma categoria provisória.

A dúvida que surge com a união das duas premissas é a seguinte: se toda verdade, sempre e indefinidamente, é uma categoria provisória, como posso tomar a verdade como um juízo de correspondência entre o objeto e sua descrição? Se nunca haverá a possibilidade de falseabilidade, não seria o caso de se adotar a teoria da verdade como consenso?

Na citação de Thomas Kuhn empreendida pelo autor, parece haver uma inclinação à escolha da teoria da verdade por consenso:

“... se o paradigma estiver destinado a vencer sua luta, o número e força de seus argumentos persuasivos aumentará. [...] Mais cientistas, convencidos da fecundidade da nova concepção, adotarão a nova maneira de praticar a ciência normal, até que restem apenas alguns poucos opositores mais velhos”. (os grifos não constam no original) (p. 21).

Essa linha de entendimento parece ser confirmada quando o autor, baseado nas lições de Arnaldo Vasconcelos, afirma que a ciência, numa terceira fase de evolução, longe de descrever, prescreve o próprio objeto de análise.

Nesse ponto, a crítica que pode ser feita parece residir na falta de objetivação do que é a verdade, tendo em vista uma maleabilidade (proposital ou não) que o texto propõe entre a verdade (i) por correspondência; e (ii) por consenso.

Continua o texto, afirmando que, no caso da ciência do direito caberia a essa prescrever as normas que devem ser. Parece que uma das dúvidas geradas pela leitura do primeiro capítulo começa a ser respondida: a ciência do direito, no modelo de referência do autor, prescreve o seu próprio objeto. Faltam as respostas quanto à forma de controle e operacionalização dessa “construção prescritiva”.

Em seguida (p. 28 e 29), parece haver uma tentativa de relacionar dogmatismo jurídico e positivismo jurídico, afirmando-se pela diminuta função reservada pelo positivismo jurídico à ciência do direito.

Aqui, a crítica pontual que pode ser feita se fixa na identificação que o texto parece fazer entre positivismo (gênero) e uma forma de exposição positivista e específica que é teoria pura do direito (espécie). Existem teorias positivistas que reservam papel relevante à ciência do direito. Essa ideia fica clara, quando o autor afirma que:

“o sentido de um dispositivo legal – sobretudo quando visto à luz de um princípio constitucional – é construído pelo intérprete, à luz do caso concreto, de forma crítica e sujeita a refutações”. (p. 30)

Ora, não há qualquer inconveniência ou incompatibilidade entre essa afirmação e o estudo positivista do direito. Essa pretensa incompatibilidade, apesar de mencionada, não é demonstrada no texto.

Acolher a ideia de que em ciência é “preciso saber duvidar” (citação de Paulo Dourado de Gusmão nas páginas 13 e 14) pressupõe a fixação de premissas. O próprio Paulo Dourado Gusmão, na passagem citada, esclarece que o discurso científico deverá ter como “ponto de partida um fato, uma premissa, uma idéia, uma constatação, uma norma, uma experiência, um princípio, ou uma hipótese”. (sem grifos no original).

O próprio autor assume um ponto de partida, aduzindo que “será à luz do caso concreto, partindo dos textos normativos, que o intérprete (re) construirá a norma jurídica a ser aplicada...” (sem grifos no original) (p. 39). Parece haver aqui, e também nas citações empreendidas aos escritos de Humberto Ávila, uma clara utilização velada do binômio enunciado/norma. Já que “texto normativo”, por certo, configura algo diferente da “norma”. É justamente essa diferenciação que permite a manutenção da expressão dogmática jurídica e, inclusive, a conveniência de sua manutenção. Isso porque o dogma serão os enunciados legais que, de forma alguma (a não ser pelos caminhos que o próprio direito positivo autoriza), poderão ser desprezados pelo intérprete. Nesse caso, correta é a utilização da expressão, desde que elucidada (Carnap).

Esse ponto de partida, portanto, é o dogma, o ponto fora de questionamentos ou fora de jogo, fora de refutação. Na citação encontrada no texto da obra de Dworkin (p. 37), é possível perceber que o autor americano também aduz nesse sentido, quando afirma:

“Os juízes considerados liberais e os chamados conservadores estão de acordo quanto às palavras que formam a Constituição enquanto texto pré-interpretativo”. (sem grifos no original).

O que não se alcança com a leitura da obra é onde está a contradição entre (i) se aceitar que as normas são construídas a partir dos enunciados legais e (ii) que o direito pode ser estudado de um ponto de vista dogmático ou de um ponto de vista positivista.

O dogma é a necessária aceitação de que aqueles textos legais seriam o ponto de partida, sem que, contra isso, possa ser investido qualquer contra-argumento. É um pilar que possibilita, inclusive, a construção de um discurso racional, possibilitando refutação, falseabilidade e, na dependência de uma série de fatores, revoluções.

Tratando da falseabilidade, o autor afirma que “quando alguém pretende travar ou neutralizar esse mecanismo, diz-se que não está agindo de forma científica, mas sim de modo autoritário”. (p. 21). No entanto, o mecanismo de falseabilidade é muito mais dinâmico e operacional quando se estabelecem premissas dentro de um discurso racional.

Tome-se como exemplo de sustentação dessas afirmações o seguinte causo:

Um certo dia um homem, de maneira ríspida e inesperada, afirma ao outro que viveria para sempre, gritando em seguida:

-- Eu sou Jesus!

Não foram fixadas premissas no diálogo, sendo irrelevante o dever de prova do alegado. Por mais que o segundo homem tentasse explicar que a ausência de premissas (de dogmas) não permitiria o desenvolvimento e, se for o caso, a refutação do alegado (vida eterna), o primeiro homem continuava a afirmar que ele era Jesus, o senhor da verdade, e que, por isso, ele poderia afirmar que viveria para sempre.

A surpresa do causo acontece porque o segundo homem, sem ter de respeitar qualquer premissa, passa afirmar:

-- Você não é Jesus!

Desesperado, o primeiro homem indaga:

-- Quem é você para afirmar que eu não sou Jesus?

Afirma, então, o segundo homem:

-- Deus!

O diálogo demonstra que a ausência de premissas objetivamente prefixadas (dogmas) impede o desenvolvimento a respeito do tema central (a possibilidade da vida eterna, no exemplo).

Isso também pode acontecer no direito. Numa discussão sobre uma dada norma jurídica, não havendo a fixação do dogma – os enunciados legais – sempre haverá a possibilidade do interlocutor se furtar da discussão, alegando que desconsidera, por inválida ou injusta no seu modelo de referência subjetivo, dado enunciado legal.

Em outro trecho (p. 39-41), o autor afirma – citando Miranda Coutinho – que as decisões podem ser, inclusive, contra legem, o que provaria a impossibilidade de utilização do termo dogmática jurídica.

Uma decisão que numa certa interpretação é contra legem nunca assim será vista por quem a profere, já que tem o dever de fundamentá-la através do direito positivo. Tome-se, como exemplo, aquela famosa decisão do Supremo Tribunal Federal que não considerou estupro presumido a conjunção carnal de um homem com uma menina de 13 anos e alguns meses, tendo em vista as peculiaridades do caso (salvo engano, restou provado que a menina aparentava ter muito mais de 14 anos, já possuía vida sexual ativa etc.). Nesse caso, para alguns, teria o tribunal extrapolado as regras do jogo e aplicado a regra do juiz (Hart), mas para outros (e também para os ministros do STF, provavelmente) houve mera aplicação do Código Penal ao caso. Mera aplicação da norma jurídica (por eles construída no caso concreto a partir do Código Penal), não sendo, absolutamente, a decisão contra legem.

Logo se percebe que é possível empreender um estudo dogmático sem aprisionar o intérprete. No entanto, a ausência de dogma permitiria que o Supremo Tribunal Federal, no exemplo dado, simplesmente afastasse a norma ao caso concreto – sem qualquer fundamentação – já que àquela norma não deveria ser. Ora, não deveria ser segundo quais parâmetros? Subjetivos, naturais, divinos, intrínsecos ao ser humano?

Parece que a fixação dogmática dos enunciados legais permite, sobremaneira, o desenvolvimento epistemológico da ciência do direito, sendo a base da possibilidade de uma refutação objetiva. Se não houver premissa não há diálogo e, sem diálogo, prevalece o arbítrio e a subjetividade.

Outro ponto de dúvida tem como pano de fundo as críticas realizadas pelo autor à completude do fenômeno jurídico e a pequenez de estudá-lo apenas através de um viés dogmático. Ora, muitos estudos dogmáticos encaram essa linha de pesquisa apenas como uma ferramenta, sem reduzir o direito à norma. Mesmo que se faça analogia ao positivismo, é possível afirmar que Kelsen (na Teoria pura e na Teoria geral do direito e do estado) afirma incessantemente que essa é apenas uma forma de se estudar o objeto-direito que podia ser visto sobre vários outros olhares diferentes. Apenas o olhar científico tem de ser baseado em premissas, por isso dogmático.

A contribuição de um estudo dogmático é contribuir mais de perto para uma discussão, mas uma discussão com fim. Trata-se da resolução do conflito de maneira objetiva. Trata-se de ser a ciência do direito, como diria Tércio Sampaio Ferraz Jr, uma tecnologia voltada à resolução de conflitos.

Penso que há um mínimo que, efetivamente, não se pode colocar em discussão que é justamente o estrato lingüístico (os enunciados) donde se inicia o processo de interpretação. Aqui, nesse exato ponto, não haveria dogmática? Não haveria aceitação absoluta? Se a resposta for não, como se poderia, por exemplo, tentar refutar uma certa tese construída por um autor se, quando se mencionasse a existência de um dispositivo legal e se construísse a norma jurídica correlata que contradissesse a tese – o autor contra-argumentasse, afirmando que o dispositivo de lei citado e também a norma correlata não podem servir de fundamento porque não são eficazes ou válidas, pois injustas e, por isso, elas não deveriam ser? Não haveria aqui, a construção de um diálogo improdutivo e não-fundante, impedindo, inclusive, o falseamento de suas alegações?

Na página 64, o autor aduz que “Se as razões que justificam a solução ‘y’ não impõem a invalidade da solução ‘x’, ou não suficientes a que ela seja alterada no plano interpretativo, deve-se buscar uma alteração do direito positivo. Em qualquer caso, porém, é a mesma ciência do direito que indica ao estudioso que a solução é ‘x’, mas deveria ser ‘y’”.

Nesses termos, é de se indagar: qual é o objeto da ciência do direito? Mesmo considerando que todo o arcabouço amplo seja o objeto, a norma será também. Pois bem. Com isso, teríamos que a ciência teria como uma de suas funções “lutar” pela modificação de seu próprio objeto?

A doutrina pode ser tomada como fonte (pragmática) do direito, mas essa mesma doutrina (que faz ciência do direito) está sim adstrita aos enunciados legais. É a partir da leitura dos enunciados (dogmas) e com a construção das normas jurídicas que a doutrina pode influenciar a construção do direito junto ao intérprete autêntico, e não requerendo sejam feitas mudanças legislativas.

Essa segunda função da doutrina até pode ser condensada e misturada no mesmo âmbito de um estudo dogmático e, até mesmo, gerar efeitos com a influência dos legisladores, no entanto, dentro de um universo de refutação (tão caro aos estudos científicos), um estudo dogmático – tomado como necessária fixação dos enunciados legais como objeto de análise – será muito mais fértil e operacional. Ou não?

Algumas observações metodológicas para aperfeiçoamento da segunda edição

· Página 1. A citação da obra de Theodor Schneider indica duas obras (A e B). No entanto, a bibliografia indica apenas uma.

Página 5. Não há referência a qualquer livro do Friedrich Muller na bibliografia.


--- NOTAS ---

(1) MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Por que dogmática jurídica? cit., p. 1. As demais referências à obra em análise serão realizadas apenas com a aposição do número das páginas cujas citações forem extraídas no próprio corpo do texto.

(2) BOMFIM, Diego Marcel. Tributação e livre concorrência: análise da influência do princípio da livre concorrência no exercício da competência tributária. Dissertação (Mestrado), São Paulo: PUC/SP, 2009, p. 219.

(3) A leitura do texto ora criticado me impeliu, quase me obrigou por uma questão de honestidade intelectual, a definir analiticamente o que entendia por estudo dogmático do direito quando da elaboração da minha dissertação de mestrado. Cf. BOMFIM, Diego Marcel. Tributação e livre concorrência. cit., passim.

(4)“Assentado o conceito de verdade na concordância entre a imagem que o sujeito faz do objeto com esse objeto...”. (p. 16). “... se o conhecimento é a interminável busca pela essência de um objeto (verdade), busca esta feita a partir da imagem que o homem tem ou faz desse objeto (existência)...” (p. 27).




***


Eu respondi ao Diego, escrevendo ao longo do texto dele próprio - com outra fonte - minhas observações e eventuais contra-argumentos. Aqui no blog, preferi resumi-las em separado, nesta parte final do post, assim:

1. Quanto à discussão ser, ou não, "meramente" terminológica:

A discussão até pode ser terminológica, mas destina-se a evitar possíveis equívocos que podem decorrer do uso da terminologia inadequada. Foi por isso que afirmei não ser ela “meramente” terminológica. Mas, realmente, como você explica no início, talvez nem existam discussões “meramente” terminológicas, pois sempre haverá a repercussão para além da mera escolha no uso do termo.

2. Quanto ao Prof. Lapatza defender a autonomia do Direito Tributário:

Eu não pretendi dizer que o Prof. Lapatza seja defensor da autonomia do direito tributário. Apenas mencionei que, ao tratar da questão da autonomia (não importando como perante ela se posiciona), ele usa a expressão ‘dogmática’ como sinônimo de ‘científica’. Foi em relação a Dino Jarach que eu disse tratar-se de uma defesa da autonomia do direito tributário. De qualquer modo, deixarei isso mais claro em eventual segunda edição.

3. Quanto ao papel da ciência não ser apenas o descritivo, mas também prescritivo:

Confesso que, lendo as observações, percebi que a minha tese de doutorado é um aprofundamento dessa questão, suscitada de forma muito superficial no “Por que dogmática...?”. Não pretendo que o cientista descreva o direito que deve ser. Ele deve descrever o direito que é, mas essa descrição não tem como ser dissociada da idéia que o sujeito faz do direito que deve ser.
Ao escolher um objeto para ser descrito (e não outro), há juízo de valor. Ao escolher quais características do objeto devem ser descritas, e quais não, também. E a razão de ser dessa descrição (afinal, para que descrever?), da mesma forma, envolve juízos de valor. Em outras palavras, a concepção do intérprete sobre “o que o direito deve ser” sempre interfere na forma como ele vê e descreve o “direito que é”. Por isso existem as divergências interpretativas, e por isso as afirmações feitas em torno do direito, ainda quando partam dos textos, não podem ser dogmáticas (afinal, as pessoas nem sempre dão ao texto o mesmo sentido...).

4. A dicotomia entre texto e norma salva o uso da expressão "dogmática jurídica"?

Acho que não. Ao contrário, a dicotomia é a demonstração de que a expressão deve ser abandonada, sobretudo porque o texto tem o sentido que o intérprete atribui a ele, e não um significado “em si” independente do sujeito. Como esses sentidos variam, não existindo “um sentido” unívoco e inquestionável para cada texto, não se pode dizer que estes, os textos, sejam dogmas. A não ser que se dê à palavra dogma sentido inteiramente diverso e até contrário do que ela tem hoje.

5. A verdade define-se pela correspondência ou pelo consenso?

Esse foi outro ponto que enfrentei com mais vagar na tese, e em torno do qual, confesso, até hoje não tenho certeza a respeito. Considero que a verdade se define pela correspondência, mas nunca temos como ter certeza quanto a essa correspondência, pelo que se faz importante recorrer ao consenso. É ele que nos permite saber se estamos mais próximos ou mais distantes dela.
Um professor do doutorado, Günter Maluschke, “quase me bate” porque defendi isso. Mas considero que, se a correspondência existe (ou se se está próximo dela), o consenso será mais facilmente obtido. Se há consenso sobre algo que não é verdadeiro, este será cedo ou tarde desfeito, tão logo alguém aponte (e convença os demais que, afinal, são também racionais) o defeito na teoria em torno da qual se formou o consenso. Em resumo, a correspondência é a verdade definitiva (inalcançável), e, através do consenso, se chega à verdade provisória, concreta, histórica e mutável. A primeira serve de padrão para a segunda, que dela infinitamente se aproxima. Conhecemos a segunda, que pensamos ser igual à primeira, até que aparece alguém (um Einstein, um Giordano Bruno, um Copérnico), para mostrar que não, nos termos referidos por Kuhn.

6. Mais uma vez, a questão da ciência prescritiva. Faltaria o livro explicar a forma e o controle dessa "construção prescritiva" feita pela ciência:

O que considero é que toda teoria descreve, mas não se limita a isso. A descrição é sempre feita para se chegar a alguma finalidade. Afinal, por que um cientista resolve descrever o ciclo de reprodução do vírus da gripe H1N1, em vez de descrever a influência da quantidade de óleo na trajetória de um grão de milho dentro da panela quando vira pipoca? Porque a descrição é feita para que se altere a realidade. Foi isso o que eu quis dizer quando afirmei que a ciência descreve, mas o faz para, em seguida, prescrever. O cientista que descrever o ciclo de reprodução do vírus da gripe suína, depois de fazê-lo, prescreverá como barrar essa reprodução de forma mais eficiente, como evitá-la etc.
Mas eu não defendo que o cientista confunda o direito que é e o direito que deve ser. Como se trata de realidade institucional, o segundo influencia – é inevitável – na forma como o primeiro é compreendido, no âmbito exegético. Nesse ponto, os limites à “construção prescritiva” são os mesmos impostos à “atividade criadora” do intérprete, que deve fundamentar racionalmente sua decisão etc. Mas a “construção prescritiva” pode dar-se no plano legislativo. Quando um autor afirma que a atual lei de execuções fiscais tem defeitos tais ou tais, e preconiza alterações que visem ao seu aperfeiçoamento, está fazendo ciência também, nesse sentido. É o mesmo que se dá quando um cientista preconiza o uso de uma asa de formato diferente, com winglets nas pontas, para propiciar uma economia de combustível para o avião a jato.

7. Não existiria incoerência ou contradição entre um estudo positivista do Direito e a distinção entre texto e norma ou mesmo o reconhecimento de que não é unívoco o sentido desta:

Na verdade, não pretendo reduzir o positivismo à Teoria Pura do Direito, e nem esta ao uso da expressão “dogmática...”. Certamente existem autores positivistas, notadamente da escola sociológica (Pontes de Miranda, Tobias Barreto etc.) que sequer admitiriam ver os textos legais como “dogmas”. O que me pareceu foi que o positivismo foi o responsável pela difusão do termo, que é bastante coerente com a idéia central a quase todas as suas divisões (pelo menos as de cunho normativista), que pretendem se ocupar apenas do direito que é, “proibindo” o cientista de cogitar sobre como ele deveria ou poderia ser.

8. Tomar o texto legal como dogma seria um ponto de partida sem o qual não seria possível a discussão racional em torno do Direito:

Acredito que existe uma diferença entre tomar o texto legal como ponto de partida, e tomar o texto legal como ponto de partida “necessário” contra o qual não pode ser investido “qualquer contra argumento”. Há uma distinção no grau de importância (absoluto ou relativo) atribuído a esse ponto de partida.
Quando alguém realiza o que se tem chamado de overrulling, ou “ponderação de regras”, muitas vezes se dá ao texto um sentido bem diverso de sua literalidade. É como se aquele texto fosse posto de lado. O fato de a decisão continuar sendo buscada dentro do sistema não afasta o detalhe de que aquele texto específico (que também deveria ser um “ponto de partida”), foi afastado. Não é, portanto, um “dogma”, assim entendido aquilo tido por “necessário” e que não pode sofrer “qualquer” contra-argumento.
Além disso, se mesmo sem sair do sistema posso extrair decisão “a” ou decisão “b” para um mesmo caso (como na moldura de Kelsen), podendo haver divergência quanto a essas soluções, não há como dizer que sejam dogmáticas. Afinal, contra elas podem ser invocados inúmeros contra-argumentos.

9. Ainda a importância do dogma: numa discussão sobre uma dada norma jurídica, não havendo a fixação do dogma – os enunciados legais – sempre haverá a possibilidade do interlocutor se furtar da discussão, alegando que desconsidera, por inválida ou injusta no seu modelo de referência subjetivo, dado enunciado legal:

Bastante razoável seu argumento. O afastamento do dogma, nesse sentido, seria dogmático, porque retiraria toda a racionalidade da discussão. Mais ou menos como aquelas duas crianças que discutem à exaustão um tema e, quando uma vê que perdeu o debate, encerra-o, enfaticamente, dizendo: “- Pode até ser assado para você, mas PARA MIM continua assim”.
Entretanto, não defendo que os textos legais não tenham qualquer valor, ou que possam ser afastados sempre que se desejar. Mais uma vez, aqui, é preciso insistir na distinção entre ter o texto como um ponto de partida a ser adotado em atenção aos ideais de segurança e democracia, e ter o texto como algo “inafastável” contra o qual não pode ser suscitado “qualquer contra-argumento”.
Sua argumentação parte da premissa de que, ou eu aceito o texto sem admitir “qualquer contra-argumento”, ou então devo afastá-lo para argumentar em torno de questões jurídicas como se ele não existisse. Acredito que exista um meio termo – que na prática é o que acontece – que deve ser considerado.
Além disso, a idéia central é: se o sentido do texto (e o que é ele senão o seu sentido?) é tão maleável, dependendo dos valores do intérprete, das peculiaridades do caso etc., como atribuir à tarefa de descrevê-los a denominação de “dogmática”?

10. Uma das funções da ciência seria lutar pela mudança no seu próprio objeto?

Sim. Não diria “lutar”, mas descrever o seu objeto com o propósito de melhorá-lo. É assim com todas as outras, não é? Se não melhorar o próprio objeto, pelo menos dar a ele um uso ou um tratamento que leve a um resultado “melhor”.
O homem não estuda a atmosfera “só por estudar”. Estuda para prever mudanças climáticas, prevenir catástrofes, controlar a emissão de gases e evitar o efeito estufa... Também não estuda os micróbios, ou o seu código genético, só para os descrever... A ciência é sempre prescritiva, não porque o médico diga “para mim não existem doenças então nunca ficarei doente”, mas porque ele tenta entender as doenças que existem para criar mecanismos que as combatam ou previnam.
Dizer que o cientista do direito deve “apenas” descrever normas é como dizer que o médico deve apenas descrever doenças, ou procedimentos cirúrgicos, estando mesmo proibido de, por qualquer meio, aprimorá-los, investigar sua finalidade ou razão de ser etc.

11. É a partir da leitura dos enunciados (dogmas) e com a construção das normas jurídicas que a doutrina pode influenciar a construção do direito junto ao intérprete autêntico, e não requerendo sejam feitas mudanças legislativas.

Por que a doutrina estaria proibida de sugerir mudanças legislativas? Por qual razão, ao reformarem o CPC, teriam de chamar economistas e sociólogos, e não processualistas?

12. Dentro de um universo de refutação (tão caro aos estudos científicos), um estudo dogmático – tomado como necessária fixação dos enunciados legais como objeto de análise – será muito mais fértil e operacional. Ou não?

É verdade. Reitero aqui o que comentei antes. Se pretendo estudar o direito positivo, tenho que partir da premissa de que ele existe. Mas se posso descrevê-lo de uma forma, e outro colega estudioso do mesmo objeto pode descrevê-lo de outra – e isso ocorre! – como posso dizer que esse estudo é dogmático? Só porque ambos descrevemos – embora de forma diferente – um mesmo objeto que nos é dado?
Nesse caso, por que não dizer apenas “ciência do direito positivo”, para evitar a confusão que o termo dogmática pode suscitar? Afinal, dizer “dogmático” o estudo pode sugerir que a minha interpretação do direito positivo é irrefutável, porquanto feita a partir da “mera descrição” de textos em torno dos quais não se admitem contra-argumentos.
Aliás, nesse ponto, há um argumento que utilizo no livro que considero apropriado. É o seguinte: se dois químicos dizem estar descrevendo certas reações entre duas substâncias, tal como esses fenômenos ocorrem e não como eles deveriam ocorrer, dizem estar fazendo ciência, e não usam a expressão dogmática. O mesmo ocorre com biólogos (quando descrevem um animal que é, e não que deve ser, tendo seu corpo como “ponto de partida”), e não se fala de biologia dogmática. Por que o direito, mesmo se entendido como limitado à descrição de normas, seria dogmático? A expressão, aí, termina por sugerir que se trata de uma descrição irrefutável, tendo sido isso o que eu procurei combater.
Talvez, com todos os esclarecimentos que você faz ao uso da expressão, e que eu fiz acima, a questão termine sendo mesmo “meramente” terminológica. Mas existem certos termos que são mais precisos do que outros. Se digo “ciência do direito positivo”, está claro que desenvolverei um estudo tendo-o como objeto, e não preciso explicar mais nada. Se digo “dogmática”, tenho de dedicar várias linhas para dizer que a dogmática a que me refiro “não é dogmática”. Não seria melhor, então, simplesmente abandonar a expressão?

13. Quanto aos aspectos metodológicos, e finalmente:

A bibliografia tem esse e outros defeitos. Também faltou o do Karl Engisch, que citei e não está referido ao final, e o nome do Marcelo Gleiser saiu errado. Vou corrigir em eventual segunda edição. Obrigado por mais essas duas indicações de problemas, que eu não tinha visto.

No mais, Diego, só tenho a agradecer, sinceramente, pela oportunidade de debater com alguém do seu nível, que, conquanto assoberbado de afazeres, dedicou tamanha atenção ao despretensioso (conquanto você o tenha considerado “audacioso”) livro que escrevi.

E fica aqui no blog, uma vez mais (já constou da mensagem com a qual o respondi), o agradecimento. Muito obrigado, Diego, pela oportunidade do debate!

Um comentário:

Anônimo disse...

Anseio pela tréplica do Diego.
Parabéns aos dois pela discussão de altíssimo nível.
Thobias Tavares (Natal/RN)