sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Memorial Hugo de Brito Machado

 

 Foi há pouco (re)inaugurado, depois de uma reforma, o Memorial Hugo de Brito Machado, pequeno espaço que montamos em nosso escritório com registros e relíquias do Professor. Originais de alguns de seus livros, os primeiros ainda escritos à máquina, primeiras edições, todas as 44 edições de seu "curso" de Direito Tributário, troféus, homenagens, as becas que usava como juiz, máquina de escrever e computador que utilizava etc. 

Abaixo, algumas fotos.

 

Há, também, versão digital, que inclusive disponibiliza em formato PDF parte de sua produção intelectual, notadamente artigos publicados em periódicos antigos, apenas em formato impresso, e que até então não estavam acessíveis na internet. Confiram em www.hugomachado.adv.br

 




domingo, 19 de outubro de 2025

Não compreendo que pelo fato de ser amado, deva o amado amar quem o ama

     Ao longo da vida,  é inevitável que se passe, em algum momento, pela decepção de não ser querido, ou não ser correspondido. Um relacionamento que termina, ou nem começa, pela decisão unilateral daquele com quem se gostaria de estar.

    Não é raro, em tais ocasiões, que terceiros, ficando a par do que se passa, geralmente pela ótica do sujeito não querido, tenham-no como vítima da maldade de quem não o quis. Pobre Fulano, teve o coração partido pela Cicrana. Coitadinha da Beltrana, ficou arrasada por causa do Cicrano...

    Quando a parte deixada ultrapassa certos limites e faz uso da violência, às vezes essa opinião pública se altera, geralmente quando a que tomou a iniciativa de por fim à relação foi uma mulher, que de algoz passa (corretamente, diga-se) a ser tida como vítima de alguém possessivo, que não respeita sua vontade etc. Talvez não seja preciso tanto, e não dependa do gênero dos envolvidos, para se chegar a essa acertada conclusão, mas nestes casos ela fica mais óbvia para quem, enviesado, não consegue ver.

    Curioso que o assunto não é novo. Talvez seja tão antigo quanto a humanidade, ou mesmo mais velho. E uma das mais belas passagens escritas a seu respeito saiu da pena de Miguel de Cervantes, em Dom Quixote.

    Na narração, em certo episódio, estavam todos a falar de uma certa "Pastora Marcela", moça que destroçara o coração de um pobre rapaz. Não quis ficar com ele, que, desolado, terminou por cometer suicídio. Tendo ouvido a história, Dom Quixote e Sancho Pança encontraram Marcela e a recriminaram pela "crueldade" de não ter ficado com o pobre Grisóstomo, o tal rapaz que morreu de coração partido.

    Marcela, então, responde a Quixote, proferindo um belo e avançadíssimo discurso em favor da liberdade humana e, no caso em particular, ainda mais avançado por reportar-se à liberdade feminina (e isso há mais de quinhentos anos).

 


        Em suas palavras (Livro I, Cap. XIV):

Hízome el cielo, según vosotros decís, hermosa, y de tal manera, que, sin ser poderosos a otra cosa, a que me améis os mueve mi hermosura51, y por el amor que me mostráis decís y aun queréis que esté yo obligada a amaros. Yo conozco, con el natural entendimiento que Dios me ha dado, que todo lo hermoso es amable52; mas no alcanzo que, por razón de ser amado, esté obligado lo que es amado por hermoso a amar a quien le ama53. Y más, que podría acontecer que el amador de lo hermoso fuese feo, y siendo lo feo digno de ser aborrecido, cae muy mal el decir «Quiérote por hermosa: hasme de amar aunque sea feo». Pero, puesto caso que corran igualmente las hermosuras54, no por eso han de correr iguales los deseos, que no todas hermosurasLVIII enamoran: que algunas alegran la vista y no rinden la voluntad; que si todas las bellezas enamorasen y rindiesen, sería un andar las voluntades confusas y descaminadas, sin saber en cuál habían de parar, porque, siendo infinitos los sujetos hermosos, infinitos habían de ser los deseos. Y, según yo he oído decir, el verdadero amor no se divide, y ha de ser voluntario, y no forzoso55. Siendo esto así, como yo creo que lo es, ¿por qué queréis que rinda mi voluntad por fuerza, obligada no más de que decís que me queréis bien? Si no, decidme: si como el cielo me hizo hermosa me hiciera fea, ¿fuera justo que me quejara de vosotros porque no me amábades? Cuanto más, que habéis de considerar que yo no escogí la hermosura que tengo, que tal cual es el cielo me la dio de gracia, sin yo pedilla ni escogella. 

 

  A passagem citada, em português:

O céu me fez, segundo vós dizeis, formosa — e de tal modo que, sem que pudésseis fazer outra coisa, a minha beleza vos move a amar-me. E, por esse amor que me mostrais, dizeis — e até quereis — que eu esteja obrigada a amar-vos.
Reconheço, com o entendimento natural que Deus me concedeu, que tudo o que é belo é amável; mas não compreendo que, pelo fato de ser amado, deva o amado, por ser belo, amar quem o ama.
Além disso, pode acontecer que o amante do belo seja feio, e sendo o feio digno de ser aborrecido, muito mal cai o dizer: “Amo-te porque és formosa; deves amar-me, ainda que eu seja feio.”

Mas, ainda que as belezas se equivalham, nem por isso hão de correr parelhos os desejos — pois nem toda beleza apaixona: algumas apenas alegram a vista, sem cativar a vontade. Se todas as belezas fizessem apaixonar e render os corações, andariam as vontades confusas e sem rumo, sem saber em qual repousar, porque, sendo infinitos os belos, infinitos seriam os desejos.

E, pelo que ouvi dizer, o verdadeiro amor não se divide, e há de ser voluntário, não forçado.
Sendo assim — como creio que é —, por que quereis que eu renda minha vontade pela força, só porque dizeis que me quereis bem?

Dizei-me: se, do mesmo modo que o céu me fez formosa, me houvesse feito feia, seria justo que eu me queixasse de vós por não me amardes? Tanto mais que deveis considerar que não escolhi a beleza que possuo; tal como é, o céu ma deu de graça, sem que eu a pedisse nem a escolhesse.

     Ou seja: porque uma pessoa gosta de outra, esta outra não é obrigada a render-se contra a sua vontade, só por isso. "Não compreendo que pelo fato de ser amado, deva o amado, por ser belo, amar quem o ama."

     Além de uma bela passagem da literatura universal, de um vanguardista discurso em prol da liberdade feminina (trata-se da liberdade humana, na verdade, mas a feminina era a especificamente violada no caso, e, estatisticamente, o é na maioria das vezes), e de um primor de lógica e filosofia, um recado:

    Deixemos de lado a fofoca e o julgamento da vida alheia (da qual nem sabemos todos os fatos relevantes para o julgamento, ainda que este nos coubesse), e voltemos nossa atenção à literatura, que é muito melhor. 

 

domingo, 12 de outubro de 2025

A metamorfose

Cerca de vinte e dois anos depois da primeira leitura, reli "A Metamorfose", de Kafka.

Fui invadido pelas mesmas ideias que tive quando li a primeira vez, mas, desta feita, mais nítidas, ou talvez passíveis de mais clara e precisa elaboração.

Naturalmente que várias interpretações para a obra são possíveis, e pode mesmo ser que o próprio autor desejasse exprimir outra. Mas a minha foi esta.

O livro trata do que nos faz humanos, e de se perdemos essa humanidade se, por uma razão qualquer (doença, acidente etc.), perdemos a capacidade de desempenhar o PAPEL que nos é dado em sociedade, ou que é esperado de nós pelos que nos cercam (e de quem esperamos o reconhecimento de nossa humanidade), seja o de provedor de um lar, seja o de funcionário exemplar (que nunca ficou doente em tantos anos).



Eu, como leitor, ficava angustiado com o comportamento dos familiares de Samsa, em alguns momentos, como a pensar: embora com forma de barata, ainda é o filho, o irmão, de vocês, que está aí, dentro dessa mente! E, em certas ocasiões, cada vez mais raras conforme avança a narrativa, os familiares até lembravam disso, mas só às vezes.

Pode-se pensar, ainda, na dor de alguém que se torna invisível para os que ama, apesar de continuar sendo a mesma pessoa por dentro. Talvez a transformação de Gregor Samsa em inseto simbolize o modo como a sociedade, e a própria família, deixam de reconhecer a humanidade de quem sofre, adoece ou se torna um "incômodo". Mas o livro cuida por igual da beleza que é a empatia, a capacidade de continuar vendo o humano mesmo quando ele está desfigurado, física ou simbolicamente. Talvez tenhamos no livro uma lembrança importante de que devemos enxergar uns aos outros com compaixão, mesmo quando o outro já parece “irreconhecível”.

sábado, 11 de outubro de 2025

Consequencias do uso da IA Generativa


 

Começamos a usar máquinas calculadoras e... perdemos a habilidade de fazer contas de cabeça.

Usamos o recurso de salvar contatos na memória do celular e... não lembramos mais o telefone de ninguém de cabeça.

Essas experiências, ao lado de tantas outras semelhantes que poderiam ser acrescidas ao rol de exemplos, deveriam servir de alerta quanto aos usos que fazemos de sistemas de inteligência artificial, notadamente de I.A. generativa.

Ao usar LLMs como o Claude o e o Chat-GPT para escrever tudo o que estamos com preguiça de escrever, corremos o risco de entrar em um ciclo vicioso, em que nossa mente terá cada vez mais preguiça, e usaremos cada vez mais os LLMs. O resultado não pode ser bom.

Uma coisa é usar para fazer algo que faríamos melhor, mas levaríamos muito tempo, tempo que não temos. E não teríamos prazer no processo. Mas se temos o tempo, ou se temos prazer no processo, por que terceirizar?

Já coisas que não conseguiríamos fazer sem a IA, pode ser o caso de serem feitas com o uso dela, mas com a cautela de que não sirva de encosto para que percamos a capacidade de fazer coisas novas, que antes não conseguíamos. Como o corredor que, por que não consegue correr 10km, mas só 8km, e ganha uma mobilete, começa a andar com ela e não só não conseguirá nunca chegar a correr 32km, mas os próprios 8km que já corre deixará de conseguir... 

Debater um texto lido previamente é uma coisa. Pedir o resumo de um que nunca foi lido, outra.

Discutir interpretações de um filme assistido é uma coisa, indagar sobre a síntese de um que nunca será visto, outra.

É preciso cuidado para não terceirizar a própria experiência cognitiva como um todo, pois, com isso, é a vida mesmo que se terceiriza. 

terça-feira, 7 de outubro de 2025

"Só falta" o contencioso judicial

 
Em um hotel em Brasília, preparando-me para despachar com membro de uma Corte Superior sobre um processo no qual emiti um parecer, percebo diante de mim estes dois quadros.

  

Eles não têm nenhuma relação com o tema do despacho, ligado ao cabimento de um Recurso e à validade de uma taxa. Mas, organizando as ideias do que deveria falar ao Ministro, começo a perceber os quadros...

O hotel em que estou não é luxuoso, embora seja confortável. Deve ter centenas de quartos. Em todos eles é provável que quadros semelhantes ornem suas paredes.

São obras de arte?

Podem não ser obras primas dignas de espaços destacados nos melhores museus, mas são, sem dúvidas, obras humanas. E expressam arte. Não são textos técnicos nem imagens informativas sobre como usar o elevador ou a escada de incêndio.

 De acordo com os dicionários, obra de arte é aquela criada "ou avaliada por sua função artística ao invés de prática. Por função artística, se entende a representação de um símbolo, do belo. Apesar de não ter isso como principal objetivo, uma obra de arte pode ter utilidade prática."

São obras de arte, portanto.

À luz da LC 214/2025, contudo, quando vigentes IBS e CBS, hotéis que comprem objetos deste tipo para adornar os quartos, algo inteiramente ínsito à atividade que gera receitas tributáveis pelos tais tributos, não terão direito a crédito (art. 57, I, "b"). Pelo menos esse direito não será assegurado por Receita Federal e Comitê Gestor. Será preciso ir ao Judiciário para fazer valer o que consta do texto constitucional (e dos incontáveis slides usados para vender a reforma tributária com a promessa de "crédito amplo").

A reflexão me levou a outra. Estou hospedado no referido hotel, mas a despesa, seja ela suportada pelo meu escritório, ou pelo Consulente que me pediu o parecer e o despacho, não gerará, por igual, crédito de IBS e CBS, à luz da LC 214/2025 (art. 283). De novo, descumprimento da promessa de crédito amplo, embora tanto a receita do hotel, como a receita do meu escritório, e a do meu consulente, sejam tributáveis pelo IBS e pela CBS, quando entrarem em vigor.

Haverá débitos, e não serão baixos, mas não se gerarão créditos.

A solução será ir ao Judiciário.

Para o contribuinte, porque o Fisco, este terá o split payment, e não precisará sequer executar os contribuintes, em regra.

Para fechar o ciclo, algumas horas depois, minutos antes do despacho, vejo, sobre a mesa da sala de espera do gabinete do Ministro, uma revista em que se estampa, como matéria de capa, a declaração de um Ministro segundo a qual a população confia muito no Judiciário: prova disto é a quantidade imensa de processos.

É curioso como um dado objetivo, mesmo de veracidade incontroversa, pode suscitar interpretações tão contrárias.

De fato, muita gente ir ao Judiciário pode sinalizar excesso de confiança no trabalho deste.

Mas pode ser o contrário. Descumpridores da lei confiam que os lesados, quando procurarem o Judiciário, terão um resultado demorado e ineficiente. Daí descumprem a lei impunemente, e forçam milhares de pessoas a procurar o Judiciário.

Será o caso da Fazenda? Prova disto são os argumentos usados em favor do split: a execução é cara, demorada, ineficiente... assim é o processo judicial, do qual ela tirará proveito como devedora, não como credora. Aliás, como devedora, nem se sabe ainda quem poderá ser demandado, nem em qual Justiça, nem em qual Estado. A pressa foi para aprovar o direito material (EC 132/2023 e LC 214/2025). O direito processual, que socorrerá aqueles que quiserem fazer valer a promessa de "crédito amplo", e tantas outras, nem se sabe como, nem quando, virá...

domingo, 5 de outubro de 2025

A verdade é filha do tempo, não da autoridade

      Aristarco de Samos, que viveu entre 310 a.C. e 230 a.C., já àquela época defendia que a terra gira em torno do sol, e em torno de si mesma. Defendia também que as estrelas são sóis como o nosso, mas que estão muito muito distantes.

 


 

     Suas ideias, contudo, discrepavam do entendimento dominante, notadamente do posicionamento de autoridades como Aristóteles e Ptolomeu, e por isso não prevaleceram.

      Ponto contra a teoria da "verdade como consenso". Mais sobre isso depois.

     Mas a lição é: nem sempre uma ideia que discrepa do entendimento dominante, das grandes autoridades de uma época, é errada.

     Não que por isso se deva acreditar em qualquer coisa.

     Não que por isso o pensamento de quem pesquisou um tema por toda uma vida, e fez incontáveis experiências, tenha o mesmo valor do achismo (ou do chute) de quem entra em contato com esse mesmo tema pela primeira vez e já se sente habilitado a deitar opiniões.

    Mas, por isso, se deve sempre considerar como "certa até prova em contrário" até a mais sólida teoria.

    A prova em contrário há de ser séria e robusta, mas ela é sempre possível.

    Ao fim e ao cabo, submetida por esse processo de depuração de erros, a construção do conhecimento humano materializa a ideia de que a verdade é filha do tempo, não da autoridade. 

 

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Qual formação deve ter o jurista?


Recebi há pouco o mais recente livro de Pedro Adamy, "Vontade do Legislador", tema tão referido no "senso comum jurídico" e tão pouco examinado com a profundidade e clareza que merece. Na obra, pelo que pude antecipar do índice e pelo que conheço de seu autor, há importante e séria contribuição na superação desta lacuna.

Impressionou-me, contudo, já no começo da leitura (que inicio hoje), estas duas passagens do prefácio feito pelo Professor Humberto Ávila:

"Vivemos na época da superespecialização: há especialistas em tudo, até em cabeça de alfinete. Não raro, estes não apenas ignoram o que é e para que serve um alfinete, como são incapazes de avaliar o material de que é feito e as origens de seu surgimento. O resultado não poderia ser outro: são especialistas em cabeça de alfinete que não sabem clara e precisamente o que é... uma cabeça de alfinete!"

Tem-se aqui uma remissão ao problema da especialização, que é puramente epistemológico. Precisamos demarcar um objeto, quando vamos estudar qualquer coisa, pois não se pode estudar tudo sobre tudo, dadas as limitações de tempo, energia e cognitivas que nos são próprias. Só uma entidade sobrenatural e omnisciente seria capaz disso. Mas, ao demarcar, nunca podemos nos esquecer que o objeto estudado faz parte de uma realidade mais ampla, com a qual está indissociavelmente ligado e relacionado, sendo a separação ou a demarcação mais fruto de nossas mentes, para melhor entendê-lo. E, em se tratando de objeto cultural, criado pelo ser humano para cumprir certas finalidades (como uma mesa, uma cadeira, ou uma ordem jurídica), isso com mais razão ainda se coloca.

A outra passagem que me chamou a atenção, por ser igualmente voltada à epistemologia, e à postura do estudioso de qualquer tema, inclusive do Direito, é esta:

"Uma ampla formação humanista mostra-se cada vez mais urgente, ainda mais em tempos de inteligência artificial, em que o conhecimento humano meramente acumulativo será sempre inferior ao artificial e aquilo que é genuinamente humano se revelará cada vez mais essencial."

Se com o surgimento do google o "jurista" que apenas decora artigos de leis e súmulas já teve a sua utilidade posta em xeque, o que dizer de uma era em que temos plataformas de Inteligência Artificial Generativa cada vez mais hábeis a calcular a probabilidade de palavras e gerar textos que parecem - mas só parecem - feitos por um agente consciente que entende o que está falando e do que está falando.

Como tenho dito, se Galileu, Copérnico, Pasteur, Einstein, usassem o Chat-GPT, eles compilariam com qualidade e elegância o conhecimento existente até então, mas seriam inteiramente incapazes de quebrar os paradigmas vigentes, como quebraram. Do mesmo modo, usando as ferramentas de IA atuais, um jurista conseguirá aplicar cada vez a mais casos, e melhor, os precedentes existentes, mas será muito difícil fazer um distinguishing, e impossível um overrulling, apenas para citar dois exemplos.

No fim das contas, talvez seja esse o nosso desafio: manter o pé no rigor analítico e o outro na formação humanista, sob pena de virarmos — todos nós — especialistas em cabeça de alfinete sem sabermos do que é feita ou para que serve, ou, de outro lado, sem nunca termos segurado um alfinete na vida. E se a inteligência artificial vier a nos superar em velocidade e acúmulo, restar-nos-á ainda aquilo que nenhuma máquina pode substituir: a capacidade de rir da própria condição, de desconfiar das "verdades" postas e, sobretudo, de ousar pensar além do estabelecido — ainda que isso nos custe a fama de hereges, como um dia custou a Galileu e tantos outros.

domingo, 28 de setembro de 2025

I.A. bloqueia a palavra cruzada com a neurociência?

A realidade é uma só. As divisões que se fazem nela são criações da nossa mente para melhor entendê-la. Mostra disso é que uma teoria sobre a realidade, quando correta, invariavelmente converge, ou se encaixa, em outras, ou com outras, que se ocupam dos mesmos fenômenos, ou de aspectos correlatos. Tal como quando se preenche um jogo de palavras cruzadas, e as entradas corretas de algumas palavras vão fornecendo as letras necessárias ao preenchimento das demais que com ela se cruzam.

Vejamos, aqui, um ponto que talvez seja exemplo disso.

A mente humana é estudada por diversas ciências. Neurologia. Psiquiatria. Psicologia. E por ramos do conhecimento que não são propriamente científicos, mas filosóficos (não vamos entrar na questão da diferença entre ciência e filosofia aqui): epistemologia, hermenêutica.

Da reunião delas, que permite que umas supram as omissões das outras - como cada uma olha para as mesmas coisas por ângulos diferentes... - são obtidos avanços surpreendentes. Costumou-se chamar essa reunião de "neurociências", assim no plural. Ou de "ciências cognitivas".

Reconhecendo a relatividade das classificações (algo que também decorre de a realidade ser una),  pode-se falar também em "ciências cognitivas", também no plural, para designar igual reunião de saberes, inclusive com larga zona de sobreposição com as "neurociências". Mas, aqui, a tônica é a parte do que a mente faz (o conhecimento), e não tanto a mente enquanto estrutura física. E se acresce a ciência da computação, no que toca à chamada "inteligência artificial". Para estudar a IA, é preciso saber, antes, o que é inteligência (sendo aí a maior dificuldade, não tanto no "artificial").

Pois bem. Os achados de umas podem explicar os achados de outras. Ou refutar. Se refutam, no jogo das palavras cruzadas, tem alguma que está dando respostas erradas. Resta saber qual é.

Miguel Nicolelis, um médico que estuda a mente (com foco no cérebro enquanto estrutura físico-corporal) tem sustentado que a inteligência artificial, pelo menos se continuar pretendendo replicar a mente humana com computadores puramente digitais (que usam linguagem que, ao fim e ao cabo, se traduz em sequências de zeros e uns), nunca o conseguirá. Isso porque o cérebro humano não é digital. É analógico. Usa a linguagem, que pode ser traduzida em zeros e uns, mas usa também outras formas de fazer e recuperar registros informacionais. 


 

Parece complicado? Pense na sensação do adulto quando sente, na atualidade, o cheiro da loção pós-barba que décadas antes era usada pelo seu avó, quando iam juntos passear no centro da cidade. Ou nas sensações a que lhe remete a lembrança de alguém querido (ou odiado). Ou o que se sente quando se ouve música usualmente reproduzida em algum momento marcante, bom ou ruim, do passado. A linguagem não chega. E, precisamente por isso, a IA não reproduz.

Nicolelis explica que, matematicamente, para um computador replicar esse caráter complexo e analógico do cérebro humano, de forma digital, seria necessária uma quantidade infinitiva de energia, e um tempo infinito de processamento. Inviável.

Não que não se possa criar um computador inteligente. Até pode ser possível. Mas não meramente acrescentando mais dados e mais potência aos que existem hoje, se continuarem realizando inferências da mesma maneira.

Isso é o que diz um médico, a partir do conhecimento que tem das estruturas do cérebro.

Vamos então à palavra cruzada.

No terreno da Epistemologia, Karl Popper escreveu, há muitos anos, que a indução, como inferência lógica, é falha e conduz a falácias. Tem problemas lógicos e epistemológicos. Há um texto seu, célebre, "o problema da indução", em que isso é aprofundado. A ideia, a rigor, foi originalmente defendida por Hume, e aprofundada por Kant. Popper a expandiu para a Filosofia da Ciência e para servir de base ao seu "falibilismo".

 

E as máquinas, hoje, fazem indução. Quando mais dados tiverem como material de treinamento, ou como matéria prima, para fazerem a indução, melhores serão os resultados. Mas eles sempre poderão incorrer em erros graves, principalmente quando o futuro não for igual ao passado, quando o contexto atual discrepar daquele de onde foram extraídos os dados do treinamento. Ou, dito de forma mais simples: diante de situações IMPREVISTAS, em que seja necessário o IMPROVISO.

Essa entrada da palavra cruzada converge e confirma a de Nicolelis. E torna errada a resposta dos teóricos de IA que dizem ser uma questão de tempo para, com algum aprimoramento quantitativo (e não qualitativo), termos uma Inteligência Artificial Geral (artificial general intelligence - AGI), igual ou, depois, superior à humana.

Com amparo nela, há autores explicando por que, por usar inferência indutiva, a IA nunca conseguirá igualar a mente humana. Pode superá-la em algumas funções específicas (fazer contas, jogar xadrez...) mas nunca de forma "geral". É o caso de "O Mito da Inteligência Artificial", de Erik J Larson.


Outra "horizontal" da palavra cruzada que desmente a "vertical" segundo a qual bastará esperar mais algumas versões do GPT para termos uma AGI


E no terreno da psicologia (sobretudo da psicologia comportamental), há autores que sustentam que o
conhecimento humano é "corpóreo". É embodied. As imagens se formam na mente, e dão origem a ideias, pensamentos, conceitos, a partir de analogias com sensações corporais. Daí decorrem duas limitações para a AGI: computadores não têm corpo e, mais emblemático, o conhecimento humano, analógico porque gravado no corpo, responde por mais de 90% do conhecimento humano. O conhecimento consciente, ou racional, é um percentual muito pequeno do nosso conhecimento. Nesse sentido, livros de divulgação científica como o "subliminar" ilustram bem a ideia.    

Outra horizontal a infirmar a vertical da possibilidade de uma AGI digital, armazenada em uma nuvem.


 

Eu meio que já apontava para essa dificuldade em meu livro, que inclusive se ampara em alguns desses autores. É o caso deste trecho:


O pensamento, aliás, talvez seja formado a partir de sensações, as quais de algum modo dão matéria prima a que se façam analogias para a construção de ideias abstratas. Dizer que um sistema normativo está cheio de contradições pressupõe que ele possui um espaço a ser fisicamente preenchido, tal como um estômago. O mesmo ocorre quando se afirma que os propósitos de determinada lei foram esvaziados, ou que a inflação corroeu um crédito ao longo dos anos. Os exemplos são incontáveis: a ideia brilhante, o raciocínio claro, a cegueira ideológica etc. Tudo isso deve ser lembrado quando se trata de programar máquinas (desprovidas de corpos) a fazer o mesmo.

 

 Será assim mesmo? Ou será que somos ludistas presos no paradigma neuro-biológico? Deposite aqui nos comentário o que pensa sobre o tema! 

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Político é tudo igual

    Entro no taxi. Spin branco, cheiro de borracha cansada e suor antigo grudado no estofado. Calor insuportável.

    - Bom dia. O Sr. poderia ligar o ar-condicionado, por favor?

 

     

O taxista atende o pedido, fecha os vidros e se justifica:

    - A coisa tá difícil. A gente tem que economizar onde dá. Ar condicionado gasta uma gasolina danada, o Sr. sabia? E agora ainda tem esse pessoal que faz corrida por aplicativo... uma multidão, trabalhando por quase nada.

    Fico na minha, para ver se ele se cala; mas parece que estava decidido a puxar assunto:

    - Esfriou? Quer que aumente a potência?

    - Não, está bem assim, obrigado. Vamos ao aeroporto, por favor
.

    Senti um certo remorso, talvez estivesse sendo antipático, e emendei:

     - Que jogo aquele do Ceará, hein?

    Agora foi ele quem se calou. Não sei se é torcedor do Fortaleza, que anda mal na tabela, ou se nem gosta de futebol. Seguem-se alguns minutos de silêncio, até que passamos ao lado de um carro com a foto e o nome de um vereador adesivados na porta. “Elder Sobreira – o Vereador de Verdade”, era o que estava escrito em letras azuis, embaixo da foto de um senhor de olhos claros e barba grisalha.

    - Esse daí é um safado! – Bradou o taxista – Político é tudo igual! Esse me apunhalou pelas costas! Voto nele mais é nunca.

    - O que houve? – Perguntei, agora com autêntica curiosidade.

    - Fez uma corrida uma vez comigo. Disse que pretendia candidatar-se a vereador. Fazer diferente. Moralizar essa roubalheira. Trabalhar pelo povo, em vez de se arrumar na política, como tantos.

    - É o que praticamente todos dizem, não?

    - Sim, mas ele parecia mesmo honesto. Gente simples. Lá do nosso bairro. Professor de uma escola da prefeitura.

    - E aí?

    - E aí que eu acreditei no pilantra, e comecei a pedir voto para ele. Peguei logo vários santinhos no comitê que ele abriu lá no meu bairro, e distribuía com meus passageiros. E olhe que ando com muita gente! Ainda convenci meus colegas do ponto de táxi a fazerem o mesmo.

    - Você então conseguiu muitos votos?

    - Não queira saber quantos! Até minha sogra convenci a votar nele. Cada passageiro que eu pegava, puxava conversa, perguntava se já tinha candidato. Também não queria ser chato nem inconveniente. Se a pessoa dissesse não ter ainda em quem votar – e para vereador quase todo mundo dizia isso – eu dava logo um santinho.

    - Com um cabo eleitoral assim, ele deve ter ganhado fácil!

    - Nem tanto. Ganhou, mas foi por pouco. Também, ele dizia que não queria comprar votos, que era sério...

     - E a punhalada?

    - Só de lembrar tenho raiva! Um safado! Como eu digo, político é tudo igual!

    - Mas o que ele fez?

    Eu, que nem queria conversar, estava cada vez mais curioso. Veio então a explicação:

    - Sabe, eu tenho um sobrinho que nunca quis saber de estudo. Largou o colégio na oitava série. Na verdade, ele não quer saber de nada. Já conseguimos vários empregos para ele, e nada. Ele não dá certo. Até na lanchonete da minha esposa tentamos, mas era um encostado, não servia para nada. Tivemos que demitir. Minha irmã, mãe dele, ficou meio chateada comigo.

    - Sei como é. Várias famílias têm alguém assim.

    - Então. Quando esse safado que eu ajudei a se eleger tomou posse, fui até a Câmara falar com ele. Fui bem recebido, tomei cafezinho com biscoitos, conheci a Câmara. Tudo firula. Contei para ele do meu sobrinho, que não dava certo para nada, e pedi que pelo menos conseguisse para ele um empreguinho na prefeitura. Ou na Câmara. Qualquer função com um salário de cinco, seis mil reais, estaria de bom tamanho...

    - E ele?

    - Até agora nada! Ele me disse que “ia ver”, e nunca me retornou! Um safado! Senti uma punhalada nas costas!

    Fiquei na dúvida entre falar o que me ocorria, ou ter paz no restante do caminho até o aeroporto. Resolvi não polemizar:

      - É, político é mesmo tudo igual. O Sr. sabe quanto tempo ainda falta para o aeroporto?

 


 

sábado, 13 de setembro de 2025

O cérebro, a indução e os limites da inteligência artificial

 


Miguel Nicolelis, em O Verdadeiro Criador de Tudo, sustenta a tese segundo a qual o cérebro humano não é apenas receptor passivo de estímulos, mas o verdadeiro criador da realidade como a conhecemos. O mundo da ciência, da arte, das instituições e da cultura não seria reflexo fiel de uma realidade “em si”, mas resultado das mediações e reconstruções que o cérebro opera de modo contínuo.

Essa ideia ecoa Kant, para quem não temos acesso direto ao númeno, mas apenas ao fenômeno filtrado pelas formas da sensibilidade e pelas categorias do entendimento. Nicolelis atualiza o raciocínio: não mais categorias a priori fixas, mas redes neurais moldadas pela evolução e pela plasticidade. O cérebro funciona, em sua visão, de maneira essencialmente analógica, integrando sinais contínuos e múltiplos, em paralelo, de modo diferente da atuação digital e discreta das máquinas de Turing.

É nesse ponto que surge o diálogo com Gödel. Seus teoremas de incompletude mostraram que nenhum sistema formal é capaz de conter todas as verdades aritméticas em seu interior. Nicolelis, em linha parecida com Penrose, sugere que a mente humana, justamente por não se restringir a regras formais, consegue intuir verdades que escapam ao formalismo digital. A intuição matemática, os “saltos criativos”, seriam expressão desse funcionamento analógico.

Aqui se abre a ponte com Popper (que ele não cita, mas cujo pensamento converge bastante com o seu). O filósofo, ao denunciar o problema da indução, afirmou que a ciência não avança por generalizações automáticas, mas por conjecturas criativas e testes rigorosos. O momento da criação de hipóteses não se deduz de regras lógicas: é um ato inventivo. Nicolelis dá a esse diagnóstico popperiano uma base neurobiológica. O cérebro, em sua dinâmica analógica, explica a emergência dessas conjecturas que não se reduzem a algoritmos.

E o que isso tem a ver com a inteligência artificial? Justamente a crítica de que, por mais poderosos que sejam os sistemas de IA, eles permanecem presos à lógica da indução estatística. São capazes de reconhecer padrões em volumes imensos de dados, mas não de inventar, no sentido forte, hipóteses novas. A IA enfrenta o mesmo limite lógico denunciado por Popper e iluminado por Gödel, que Nicolelis agora formula em chave neurocientífica: a criatividade humana não é computável.

Esse conjunto de paralelos — Kant, Popper, Gödel e Nicolelis — ajuda a refletir não apenas sobre ciência e tecnologia, mas também sobre política e direito. Afinal, se a realidade social também é criação do cérebro humano, importa pensar até que ponto delegar decisões à máquina não significaria abrir mão justamente da dimensão que nos faz humanos: a capacidade de imaginar, conjecturar e criar mundos.

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Por que dogmática e Textura Aberta

 Refletindo esses dias, percebi que dois livros meus, separados por quase vinte anos, têm bastante relação um com o outro. Pode-se mesmo dizer que o mais recente é o refinamento de ideias que já se encontravam, embrionárias, no mais antigo.


Por que Dogmática Jurídica? foi escrito em 2007. Nele, a ideia central é: as normas se expressam por intermédio de textos, compostos por expressões e palavras, os quais só adquirem sentido no contexto em que aplicadas. Mesmo que a cognição plena e absoluta dos textos fosse possível (de nenhum objeto o é), ela não o seria em relação aos elementos contextuais. Daí por que o ramo do conhecimento que se propõe a estudar normas, se se pretende científico, não se pode designar "dogmática". É um oxímoro falar-se em "ciência dogmática". Algo como calor gelado ou secura úmida.

 


No mais recente, fruto de minha tese de livre docência na USP, aprofunda-se essa ideia, apontando-se a inferência abdutiva, o método falibilista popperiano, e o modelo Toulmin de argumentação, como hábeis a, juntos (são como que desdobramentos de uma mesma ideia explicada de formas diferentes), permitir a indicação do sentido que os textos normativos têm no caso em que aplicados, de modo intersubjetivamente controlável e, nessa condição, passível de crítica.   

A textura aberta da linguagem permite ou suscita questionamentos bastante relevantes a respeito da determinação do sentido das palavras (à luz dos fatos relevantes ao caso), o que começo a explorar neste livro. Sem dúvida, há muito ainda a ser tratado. Em especial a impossibilidade de, com mais palavras, se afastar a vagueza ou a ambiguidade de palavras: incorre-se em regresso ao infinito. Para deixar claro o sentido de uma palavra, usam-se pelos menos outras quatro ou cinco, as quais, cada uma delas pode ter seu sentido problematizado. Exemplo: renda é acréscimo de patrimônio em período determinado de tempo. O que é acréscimo? O que é patrimônio? Devoluções são acréscimos? E se forem ligeiramente maiores que a quantia retirada? Quanto maior, para que passem de devolução a acréscimo? E se se tratar de acréscimo ao patrimônio material para reparar decréscimo moral?

Não que tais questões não tenham solução. Tem. Mas não se pode ingenuamente achar que só acrescentando mais e mais palavras ao debate se vai, abstrata e aprioristicamente, resolvê-lo. Remeto, a esse respeito, à polêmica "Soler x Carrió", mas esta fica já para outro post.