quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Pensamento brasileiro e Direito Tributário

Generalizações são sempre complicadas, mas o brasileiro tem, em regra, a mania de achar que, talvez com exceção do futebol, tudo o que se produz por aqui não presta.

Enquanto a circunstância de ter sido feito o produto no próprio país é um atrativo a mais para o consumidor americano, a ser evidenciado com bandeiras e estrelas chamativas nas embalagens, no Brasil o "in" é ser importado.

E isso não ocorre apenas com carros, vinhos, queijos, praias, charutos, aviões, ternos, gravatas e sapatos. Dá-se o mesmo com teorias. Inclusive jurídicas.

Sem querer desacreditar as teorias construídas em outras terras (que, pelo mesmo motivo pelo qual não são necessariamente melhores, não são necessariamente piores), devemos lembrar que os seus autores são pessoas também. Dormem, acordam, comem, falam, acertam, e se equivocam... Talvez a sua maior fama se deva precisamente à maior difusão que se dá aos seus escritos. Machado e Eça, por exemplo, são muito, mas muito melhores que Dickens e Poe, mas, sobretudo naquela época, havia grande diferença entre escrever em inglês e em português. Hoje, com internet, traduções mais fáceis, e uma maior atenção ao multiculturalismo (com a quebra da “hegemonia cultural européia”), isso talvez mude. Paulo Coelho que o diga, embora o exemplo não seja – na minha opinião – muito feliz. Outros podem ser apontados, como as sandálias havaianas, que serão adiante mencionadas, os aviões da embraer, os espumantes gaúchos, os charutos baianos... Quando os estrangeiros começam a valorizar, as coisas mudam um pouco.

Nunca tinha pensado seriamente nisso. Na disciplina "pensamento constitucional brasileiro", ministrada pelo Prof. Martônio Mont´Alverne, fui levado a pesquisar o assunto. Produzi, até, o texto sobre Tobias Barreto, que veiculei aqui no blog, primeiro como um longo post, e depois por meio de texto no scribd (clique aqui).

Bom, mas, agora, atualizando o Baleeiro, percebo muitas outras demonstrações de que os brasileiros, às vezes, têm, também, pensamentos originais. Afinal, por que raios aqui nessas praias existiria um feitiço destinado a amesquinhar cérebros e condená-los apenas a "difundir no mundo latino o pensamento europeu ou americano", como às vezes se diz do trabalho dos mais destacados pensadores Brasileiros?

Não estou – vale insistir – pretendendo aqui criticar, desmerecer ou depreciar doutrinas estrangeiras, autores estrangeiros ou universidades estrangeiras. Longe disso. Ter conhecimento do que se pensa e escreve em outros lugares é indispensável, e muitíssimo enriquecedor. O próprio Martônio, professor da disciplina na qual pretende destacar a existência de um pensamento constitucional brasileiro, fez doutorado e pós-doutorado na Alemanha, e incentiva seus alunos a, sempre que possível, fazer cursos no exterior, demonstração de que o enaltecimento de uma coisa não implica o desmerecimento da outra. A idéia é unicamente destacar que no Brasil também – frise-se o também – se pensa, e que esse pensamento não é, necessariamente (embora possa até ser, circunstancialmente), inferior, ou mera reprodução do que já se disse no exterior.

Separei, como demonstração disso, dois assuntos: federalismo e taxas.

Quanto ao federalismo, diz-se, com não rara freqüência, que a federação brasileira é uma "cópia" da americana.

Essa afirmação, hoje vejo, não passa de um atestado de desconhecimento da história.

Não se pode negar que a Constituição dos EUA teve sua influência sobre a nossa, de 1891, mas daí a dizer que uma é a cópia da outra é uma distância imensa. Basta ler as duas para perceber a abissal diferença.

Aliás, a principal demonstração dessa distância reside precisamente no Direito Tributário.

Abro, aqui, um parêntese.

Tenho ouvido, de muitos alunos, que Direito Tributário é a disciplina mais chata que pode existir. Às vezes eles falam isso como elogio, para dizer que, mesmo assim, "até que" gostaram das minhas aulas.

Acho que existe uma imensa parcela de culpa, por essa suposta chatice, na forma como a matéria tem sido ensinada por aí. É o velho "decoreba", que invade os cursos de graduação em Direito, no seu início, por conta do vestibular, e, no seu final, em virtude do estudo para OAB e para concursos públicos.

Daí a importância de saber a razão de ser das coisas, que as deixa muito mais interessantes. Não basta saber como as coisas são. É preciso investigar por que são assim, e não de outra forma. Deve-se ir ao seu fundamento.

O Direito Tributário está na origem das revoluções burguesas (Francesa, Americana, Gloriosa, Inconfidência, etc. etc.) com as quais se iniciou a luta pela proteção aos direitos humanos. Está, igualmente, na base das discussões atuais sobre o papel, o tamanho, o perfil e a própria legitimação do Estado. Não é à toa que Dworkin, no "Is Democracy Possible Here?", tem capítulo dedicado apenas a "taxes and legitimacy". Bom, mas esse é tema que, embora seja tocado de raspão na parte final de minha tese, é a Raquel quem vai desdobrar e aprofundar, em doutorado que planeja fazer no Rio de Janeiro, sob a orientação do Prof. Ricardo Lobo Torres. Eu fecho o parêntese por aqui, apenas registrando que tenho a pretensão, um dia, de escrever livro que torne o direito tributário uma das matérias mais interessantes do curso de Direito. Se nesse dia- que talvez demore bastante - não mais existirem livros, que seja pela internet, o que facilitará o trabalho com o recurso a importantes recursos audiovisuais (clique aqui).

Parêntese fechado, voltemos ao federalismo.

Como a federação envolve a existência de divisões internas dotadas de autonomia, e como a autonomia depende da existência de recursos financeiros, diz-se que a competência para os entes federados decretarem seus próprios tributos é elemento essencial e característico de uma federação.

Chega-se a dizer, inclusive, que a confederação americana (que antecedeu a federação) não deu certo precisamente porque a União (que lá, na época, era a "parte fraca") não tinha essa competência, dependendo de transferências dos Estados. A sovinagem destes fez a confederação fenecer, tornando necessária a criação de uma federação, que se caracterizou, vejam só, precisamente pela possibilidade de a União criar seus próprios tributos, independentemente do consentimento dos Estados.

E o que isso tem a ver com o fato de a federação americana ter sido supostamente copiada pela CF de 1891?

Muita coisa, pois tanto a gênese da federação, no Brasil, como a forma como ela foi caracterizada (no plano essencial, que é o da divisão das competências tributárias) deu-se de forma completamente distinta da americana. É o que se depreende de Baleeiro:

"23.11. A discriminação no Brasil

        

    A federação, no Brasil, resultou de lenta evolução de mais de século e orientou-se gradativamente para solução diversa: a rigidez na distribuição das rendas entre os governos.

            Das instituições lusitanas, recebemos Municípios fortes e que já exerciam o poder de tributar com mais vigor do que os próprios monarcas, originariamente confinados nas rendas dominais e regalianas. Não raro, a Coroa portuguesa recorria aos bons ofícios 

das Vereanças Municipais do Brasil para que fossem lançados tributos des

tinados a interesses comuns com a metrópole ou somente desta. Lúcio de Azevedo esclarece com vários exemplos históricos essa afirmativa. O pagamento da tropa recrutada para expulsão dos holandeses, o dote da infanta D. Catarina, futura rainha da Inglaterra, a ajuda para remodelação de Lisboa, após o terremoto, são casos bem conhecidos e que atestam a prática do apelo real à tributação dos municípios.

            Ora, após a independência, as linhas mestras da futura discriminação de rendas iriam esboçar-se mercê do Ato Adicional de 1834, que criou as Assembléias Legislativas Provinciais com o poder de decretar impostos.

            Os impostos das províncias iriam abrir caminho entre os do governo imperial e os dos Municípios. O ato Adicional não discriminou tributos, limitando-se a estatuir que as províncias e Municípios “não prejudiquem as imposições gerais do Estado (art. 10, § 5°)”, isto é, do governo nacional.

            Desde 1835, o Cons. Mel. Nascimento Castro e Silva propunha que se apartassem nitidamente os impostos provinciais, já que a Lei n° 99, de 31.10.1835, se limitara a reservar ao Império longo rol de tributos. Era a discriminação rígida a defendida por aquele estadista. Não foi ouvido, de sorte que até a queda do trono vigorou a confusão, invadindo as províncias a competência tributária da Fazenda Nacional. Vários relatórios nos dão notícia dessa caótica fase das finanças nacionais.

            A Constituição de 24.02.1891, em face dessa experiência dos males da flexibilidade, envereda firmemente pela solução contrária, dividindo os impostos entre a União e os Estados. Estes, através de suas constituições e leis orgânicas, fariam o quinhão dos Municípios. A partilha não foi fácil, pois os anais da primeira Constituinte republicana mal abafam os ecos dos debates entre Rui e Amaro Cavalcânti na defesa da União, de um lado, contra Júlio de Castilhos e outros, no lado oposto, como defensores dos Estados.

            Os principais estadistas dos primeiros anos da República estavam sinceramente convencidos de que os cofres federais haviam sido desamparados na discriminação das rendas. Por falta de perspectiva no tempo, raciocinava

m sobre as cifras de 1890 a 1900. Entretanto, pisando com firmeza no campo da competência concorrente, bem largo sob o regime de 1891, o legislador federal incorporou ao orçamento da União, um a um, os impostos de consumo, renda, vendas e consignações.

            A Revolução de 1930 veio encontrar a União na posse pacífica de mais de 60% das arrecadações, o que demonstra quão injustificado se mostrou o pessimismo de Rui e outros."


Inspiração e influência da federação americana, talvez. Cópia acrítica, de jeito nenhum. Basta ver a realidade dos Municípios que herdamos “das instituições lusitanas”, e a rigidez das competências tributárias dos entes federativos, em 1891, inteiramente diversa da competência concorrente e sem delimitação de âmbitos constitucionais que caracterizou e ainda caracteriza a forma de custeio da federação americana.

E, o segundo assunto, igualmente a revelar que por aqui também se

 pensa: as taxas. Enquanto na Europa a doutrina ainda vacilava para diferenciá-las dos impostos, aqui, Amaro Cavalcanti, em 1896, já traçava com precisão a diferença. Confira-se o relato de Baleeiro:

“A Constituição de 1891, nos arts. 7° e 9°, aludia especificamen

te às taxas e mencionava as de correios e telégrafos. Em 1896, já Amaro Cavalcânti ponderava que “a palavra ‘taxa’, sem embargo de ser igualmente usada como sinônimo geral de impostos, não devia ser assim entendida ou empregada; visto como, na sua acepção própria, ela designa o gênero de contribuição, que os indivíduos pagam por um serviço diretamente recebido. (…) Enquanto, pelas taxas, o indivíduo procura obter um serviço que lhe é útil pessoalmente, individualmente – o Estado, ao contrário, procura, pelo imposto, os meios de satisfazer as despesas necessárias da administração ou indispensáveis ao bem comum, tais como: a manutenção da ordem, as garantias do direito etc”. (Amaro Cavalcânti, Elementos de Finanças, cit., p. 170.)

Nessa época, vacilava ainda a doutrina européia, sobretudo na França e na Inglaterra. Mas, no Brasil, o conceito de “taxa” não só estava difundido, mas fora consagrado na primeira Constituição republicana, que, nesse particular, foi religiosamente seguida pelas Cartas de 1934, 1937 e 1946.”


Não obstante as lições da Amaro Cavalcanti, de 1896, há tributaristas, hoje, que, para demonstrar erudição ao diferenciar impostos e taxas, recorrem a autores franceses e ingleses, autores que talvez sejam discípulos daqueles que vacilavam em torno do conceito que, no Brasil, à época, já estava difundido... Algo como ir a Paris comprar sandálias “havaianas” feitas no Brasil, só porque por lá agora estão na moda e foram o “hit” do verão francês... São iguais às da cozinheira, compradas na mercearia ao lado, detalhe que em princípio tornaria totalmente fora de cogitação o seu uso, mas o fato de terem sido adquiridas nos Champs Elysees, a no mínimo 24 euros, torna tudo diferente...

6 comentários:

rafael disse...

Sobre federação, há um texto de ciência política (se eu achar o link na bagunça daqui, posto)que traz um ponto de vista interessante: Ao contrário do que é comum, ele fala da Federação Americana como a exceção e não como a regra, a despeito de ter sido o primeiro Estado organizado nestes moldes.

Feitosa Gonçalves disse...

Concordo plenamente!

Quando comecei a ler sobre a Federação, me ocorreu logo a análise do Professor Paulo Bonavides, notadamente no que concerne ao Município brasileiro... De fato, dizer que a federação brasileira é cópia é desconhecê-la, é desconhecer a própria teoria do federalismo...

Aliás, sobre doutrinas jurídicas, o Direito Municipal brasileiro também desenvolveu-se de forma séria e pioneira, a meu ver, basta pensar que há muito há quem defenda o Município como parte da Federação. Sem querer adentrar aqui a polêmica de ele o ser, ou não.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Rafael,
Exceção ao quê?

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Feitosa,
Realmente, o município brasileiro é um dos aspectos que torna nossa federação distinta das demais, não se podendo falar em imitação.
Quanto a isso, dois comentários são pertinentes.
O primeiro é o de que, como mostra baleeiro no texto citado no post, isso foi herdado das instituições lusitanas. É curioso, nesse contexto, que, apesar disso, Portugal, a origem dessa influência primeira, seja um estado unitário.
O segundo é que muita gente, dentro do espírito do post, despreza essa criação brasileira, só pelo fato de ser brasileira e de não ter sido copiada de lugar algum.

Feitosa Gonçalves disse...

Hugo, em termos de história dos municípios eu sou meio niilista rs!
É que a própria origem do município português é meio controversa, pelo que pude apurar quando pesquisei o tema, na época, fiz um "escorço superficial" cuja primeira parte publiquei na história e-história.

Na segunda parte abordo especificamente o município brasileiro, e estou meio que convencido que nossa organização municipal, embora tenha herdado bases portuguesas, destas logo se apartou, seguindo "rumos autônomos". De fato, por uma série de fatores, estou tentado a crer que nosso municipalismo é único, e em alguns aspectos mais avançado do que a maioria dos demais países. Mas isso certamente demanda um estudo mais aprofundado...

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

"Por supuesto", Feitosa, nosso município tomou rumos próprios. Tanto que aqui deu margem ao surgimento de uma federação, com nítidas (e originais) características municipalistas, enquanto Portugal segue como estado unitário.