sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Reforma tributária... Boa para quem? E para quê?

O Governo Federal encaminhou ao Congresso proposta de emenda constitucional (PEC) destinada a promover diversas alterações no Sistema Tributário Nacional. É a chamada reforma tributária, pela qual muitos clamam.

Quando se fala em reforma tributária, contudo, é preciso esclarecer que essa expressão não diz muita coisa. Apenas se reporta a uma mudança mais substancial na legislação tributária, sobretudo no plano constitucional. Mas mudança para quê? Ah... Nesse ponto os que clamam por uma reforma tributária já começam a divergir. A convergência parece estar apenas em que se deve mudar alguma coisa, mas quando se começa a discutir o que mudar, as divergências se iniciam. Uns querem menos carga, e outros mais. Uns querem menos tributos, e outros mais...

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que uma mudança na Constituição, que altere o perfil de alguns tributos e as competências para os instituir não interfere, necessariamente, na carga tributária. Essa é definida, basicamente, pela alíquota desses tributos, definida, via de regra, em lei ordinária. A Constituição só outorga competências.

Em segundo lugar, deve-se lembrar que o Direito Tributário, o estabelecimento de regras prévias que determinem como os tributos devem ser instituídos e cobrados, representa, pelo simples fato de existir, um limite ao poder do Estado de exigir tributos. Limite na medida em que o Estado não pode cobrar tributo (ou pelo menos não deveria) em termos diversos dos normativamente estabelecidos. Mudanças nessas normas implicam a possibilidade de mudanças nesses limites, e como quem coordena as mudanças é o próprio Governo, é muito difícil acreditar que elas aconteçam para aumentar os limites à tributação. Quase certo que seja uma oportunidade para que sejam afrouxados.

Daí que, na história recente do Brasil, todas as reformas implicaram aumento de tributos.

Outro dado a ser considerado é o da segurança jurídica, e o do chamado "efeito didático da jurisprudência".

Quando uma lei é editada, criando um tributo, diversas dúvidas surgem. Contribuintes procuram defeitos e inconstitucionalidades para impugnar a exigência. O fisco procura interpretações (da lei) que ensejem a exigência da maior quantidade de tributo possível, e edita atos infralegais que espelham esse entendimento, muitas vezes exorbitando os limites da lei. Começam, então, os conflitos. Alguns anos depois, a jurisprudência se sedimenta em torno do assunto, e os conflitos diminuem. A jurisprudência passa a ter um "efeito didático" sobre como entender o texto normativo.

Pois bem. Depois de tantos anos - e tantas divergências - em torno do ICMS, do PIS e da COFINS, tais tributos serão agora extintos, para a criação de um IVA. Ou seja, vai começar tudo de novo.

Se eu pensasse como alguns colegas advogados, sem um pingo de espírito coletivo e de forma inteiramente egoísta e individualista, estaria adorando. Mais teses, mais conflitos e mais clientes. Mas não penso assim. E, felizmente, não preciso de tais mudanças para conseguir trabalho. Seria como o médico que "adora" quando se espalha uma epidemia, por assim faturar mais. Algo inteiramente anti-ético e contrário ao juramento feito.

Mas, como disse, "se eu pensasse". Não penso. E não gostei da PEC.

De plano, porque CONFIRMA um abuso que faz muito tempo vem sendo perpetrado, e agora o será "de vez": o desvio das contribuições.

É uma "historinha" que conto no "Contribuições e Federalismo", em torno do qual fiz post há alguns dias, colocando os resumos em diversas línguas que o acompanharam quando ainda era dissertação de mestrado.

Em 1987-1988, durante os trabalhos da constituinte, os que elaboravam nossa Constituição Federal pretendiam - como de fato fizeram - ampliar os benefícios concedidos pela Seguridade Social. Afinal, tratava-se da elaboração de uma Carta cidadã, avançada no prestígio aos direitos fundamentais de segunda e terceira dimensões etc.

Mas havia o problema: de onde tirar o dinheiro necessário a tais benefícios?

A primeira idéia foi a de aumentar a contribuição incidente sobre a folha de salários. Afinal, essa era a base de custeio da Seguridade até então.

O problema é que há uma lei - ou postulado, tanto faz - de economia (causal, e não jurídica), segundo a qual quanto maior o ônus do tributo maior a tendência à evasão (lícita ou ilícita). Dito por outras palavras, se o tributo tem alíquota de 0,5%, quase todos pagam e a arrecadação é de X milhões de reais. Se o tributo tem sua alíquota elevada para 1%, a arrecadação sobre para "quase" 2X milhões de reais, pois alguns daqueles que pagavam quando era 0,5% começarão a encontrar caminhos, legais ou ilegais, para não pagar. E, finalmente, se tal alíquota passa para 20%, o tributo seguramente não ensejará uma arrecadação de 20X milhões de reais. Haverá um ponto, aliás, em que o aumento da carga começará a implicar uma diminuição da arrecadação, pois o planejamento tributário e até mesmo a sonegação serão compensadores, do ponto de vista meramente econômico.

Fala-se, então, na "Curva de Laffer", que é mais ou menos assim:

Pois bem. Voltando à Previdência, concluiu-se que o aumento da contribuição incidente sobre os salários não só não propiciaria a arrecadação necessária, como prejudicaria o próprio trabalhador, pois seria um estímulo à informalidade, à contratação sem carteira, à colocação na carteira de trabalho de um valor, com o pagamento de outro maior, por fora, etc.

Qual a solução?

Simples. A instituição de outras fontes de custeio para a seguridade, atreladas às empresas mas não vinculadas à folha de salários. Foi daí que nasceram contribuições sobre o faturamento (COFINS) e sobre o lucro (CSLL).

Para garantir que a Seguridade teria autonomia em relação ao Governo Federal, o constituinte estabeleceu que:

- a seguridade seria administrada de forma democrática e descentralizada, com a participação do Governo (que, logo, com ela não deveria ser confundido), dos empregados, dos empregadores e dos aposentados (CF, art. 194);

- a seguridade seria financiada de forma indireta, pelo orçamento da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e, de forma direta, pelas contribuições sobre: folha de salários, faturamento e lucro, entre outras (CF, art. 195);

- a seguridade deveria contar com ORÇAMENTO AUTÔNOMO em relação ao orçamento fiscal da União, orçamento ao qual as contribuições que a financiam diretamente deveriam ser todas destinadas (CF, art. 165, § 5.º, III).


Mas o que se assistiu em relação a tais contribuições?

Exatamente o contrário do que preconiza a CF.

A seguridade foi aos poucos perdendo autonomia. Hoje todas as suas contribuições, inclusive as que ainda restavam com o INSS, são arrecadadas pela "SuperReceita", e só algumas delas são destinadas a um orçamento de previdência (e não da seguridade), sempre deficitário. As outras são apropriadas pelo orçamento fiscal da União, sob a desculpa de que neste constam despesas com saúde e assistência (EM DESRESPEITO ao art. 165, § 5.°!), e a previdência segue sempre deficitária...


Perdem contribuintes, premidos por pseudo-contribuições. Perdem aposentados, cujos benefícios são cada vez mais estrangulados pela suposta falta de recursos. E perdem, principalmente, Estados e Municípios, e, com eles, o federalismo brasileiro, porque não recebem a parte que lhes cabe na partilha da arrecadação federal, feita apenas entre os impostos, e não entre as contribuições.


Até uma DRU, imoral autorização constitucional para que as receitas obtidas com contribuições sejam gastas com qualquer coisa, foi aprovada, e seguidamente prorrogada.


E o que a reforma tributária tem com isso?!


Tudo.


A reforma "transforma" o PIS e a COFINS, as contribuições que propiciam receita mais significativa ao Poder Público - e que deveriam se destinar à seguridade -, em um IVA Federal. Isso mesmo: IVA Federal!


É a confirmação de que tais exações eram, e sempre foram, impostos disfarçados. Nunca foram contribuições. Só no nome.


E o tal IVA, pela proposta, não suprime o IPI, pode ser disciplinado por medida provisória e não é partilhado com Estados e Municípios. Pode? É só uma autorização para que a União faça, sem amarras, o que já vinha fazendo: use o PIS e a COFINS para o que quiser, mandando às favas as despesas de ordem social que inspiravam a sua cobrança. A seguridade continuará quebrada, agora de forma irremediável, e ganhará força o falso discurso dos que são contrários a ela e favoráveis a que se entregue esse filão para o setor privado.


Ora, seguridade, especialmente previdência, é algo que deve ser prestado pelo Estado, por natureza mais durável que uma empresa privada. Além disso, se com todo o poder de tributar a previdência estatal está supostamente "falida", como um banco teria lucro só com contribuições voluntárias de seus clientes? Se os bancos estão tão interessados em previdência privada, deve haver algum buraco nesse discurso.


O "social", no Brasil, só serve para isso: sensibilizar a população para mais uma cobrança. Depois que essa cobrança se "consolida", ocupa seu espaço e propicia o argumento de que se for extinta causa um "rombo" no orçamento, pronto: está definitivamente implantada, e já pode assumir sua verdadeira identidade. É o que a reforma vai fazer com as contribuições, mostrando o acerto de todos os que jamais acreditaram que fossem verdadeiramente contribuições.


A PEC tem muitas outras peculiaridades, as quais serão objeto de futuras postagens. O texto é longo, complicadíssimo, cheio de remissões, e terei de gastar um tempinho em seu exame para poder comentar suas particularidades.

7 comentários:

George Marmelstein disse...

Hugo,
curiosamente, na minha dissertação de mestrado, quando tentei "justificar" os direitos sociais, cheguei a uma conclusão bem parecida que a sua: os direitos sociais são muito mais uma desculpa de "marketing político" para o aumento da carga tributária do que efetivamente os culpados pelo alto custo-país.

Eis um trecho:

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Aqui no Brasil, é bastante freqüente ouvir discursos defendendo que os direitos sociais seriam os principais responsáveis pelo elevado “custo-país” e pelo entrave ao crescimento econômico da sociedade brasileira, já que a maior parte da receita fiscal brasileira refere-se aos chamados “tributos vinculados”, ou seja, tributos com destinação constitucional específica para áreas sociais (CPMF – saúde, Salário-educação – educação, COFINS – seguridade social, entre inúmeros outros). Esses tributos, segundo os que defendem o liberalismo econômico, encareceriam o preço dos produtos brasileiros, dificultando a inserção das empresas nacionais na tão competitiva economia de mercado global.

Essas idéias foram apresentadas, por exemplo, pelo ex-Secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, em palestra proferida em março de 2003, durante o “Seminário Direito Tributário – Inovações e Aspectos Polêmicos”, realizado pela AJUFE (Associação dos Juízes Federais do Brasil), em São Paulo. Na palestra, Maciel discorreu sobre as tendências do sistema tributário no Brasil e defendeu que qualquer intenção de diminuir a carga tributária no Brasil deveria começar pela supressão dos direitos sociais.

Esse ponto de vista pode ser facilmente refutado. Basta lembrar da DRU– Desvinculação das Receitas das União, instrumento criado pela Emenda Constitucional 27/2000 e pela Emenda Constitucional 41/2003 para que o Governo Federal pudesse utilizar as contribuições sociais para promover o equilíbrio fiscal e financeiro do Tesouro Nacional. Com a DRU, o Governo fica autorizado a utilizar as receitas provenientes das contribuições sociais para cumprir os compromissos externos assumidos com o Fundo Monetário Internacional, especialmente para pagar juros da dívida externa, burlando a real vocação constitucional dessa espécie tributária, que é o custeio de programas sociais.

Se as contribuições sociais são as principais fontes de receita da União, certamente não é porque o governo está preocupado em implementar direitos sociais, mas sim porque essas contribuições, ao contrário dos impostos federais, não geram para a União a obrigação de repassar aos Estados e Municípios as receitas delas provenientes, além de terem um efeito retórico de certo modo positivo perante a opinião pública.

Uma análise detalhada do Gasto Social Federal, no Brasil, demonstra que as verbas destinadas ao custeio de programas sociais são muito mal aplicadas, seja porque não são suficientes para “dar conta das necessidades sociais insatisfeitas da população brasileira, produto de tantos anos de exclusão social e não efetivação de direitos sociais”, seja em razão da “ineficiência congênita do gerenciamento dos programas sociais”, em especial por causa da corrupção, do super-faturamento, do desperdício, da superposição de programas sociais, do clientelismo e da má-gerência administrativa propriamente dita (CASTRO, José de Abrahão e outros. Análise da evolução e dinâmica do gasto social federal: 1995-2001. Texto para Discussão, Brasília: IPEA, 2003).

Além disso, conforme reconhece o próprio Governo Federal, “no Brasil, apesar das melhorias observadas em diversas áreas desde meados dos anos oitenta, a ação do Estado em arrecadar impostos e transferir benefícios é, ainda, pouco eficaz em reduzir a desigualdade de renda. Enquanto nos demais países combinam-se políticas universais com políticas sociais específicas de modo que uma maior fração das transferências líquidas de recursos públicos seja destinada aos grupos de menor renda, no Brasil as transferências líquidas essencialmente preservam a desigualdade de renda. Isso significa que um montante maior de recursos per capita é destinado aos grupos de maior renda” (BRASIL. Orçamento social do governo federal 2001 – 2004. Brasília: Ministério da Fazenda – Secretaria de Política Econômica, 2005).

Assim, no Brasil, os programas sociais praticamente não conseguem gerar redistribuição de renda, já que os recursos arrecadados para área social, em sua maioria, retornam para as classes mais altas.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

É verdade, George. Se fossem efetivamente destinados à implementação dos direitos sociais, a situação dos brasileiros em geral seria muito diferente, e, por incrível que pareça, tais tributos não seriam tão elevados.
No caso da COFINS, do PIS e da CSLL, se a aplicação fosse exclusiva na seguridade, suas alíquotas poderiam ser muito menores, e ainda sobraria dinheiro.

Mas, a propósito, muito interessante sua dissertação. Você a publicou? Pretende publicar? Onde posso encontrá-la? Disponível na internet?

Unknown disse...

Segundo,

Na última reunião do ICET, tivemos a oportunidade de debater um pouco sobre esse assunto (Reforma Tributária) e até sugiro que este seja o tema do próximo encontro.

A dita reforma quer legalizar de vez a utilização de contribuições com fins sociais pelo tesouro nacional para outros fins.

Impostos criados com fins Sociais, porém, posteriomente com a possibilidade de serem utilizados pelo Governo Federal para o equilibrio fiscal e financeiro, como bem mencionou o colega George em seus comentários, perdem o sentido de social a partir do momento que pode ter vários fins.

Primeiramente, deve-se ser aplicado corretamente os tributos vinculados ao um fim social, principalmente quando lembramos que estamos em ano eleitoral, onde um dos principais papéis das bancadas é levar recursos para suas bases, recursos com "fins sociais" .

O Brasil é um dos poucos países, se não for o único, que sustenta literalmente as organizações não governamentais. As famosas ongs que, em tese, muitas delas são criadas para ajudar brasileiros que não tem seus Direitos socias básicos garantidos na prática, como saúde e educação.

A reforma deveria ser ampla não apenas de cunho tributário, destinando obviamnete os tributos para seus devidos fins e sim com o fechamento dos cofres públicos para a utilização das ongs de recursos do tesouro nacional, como a utilização correta do próprio Governo Federal desses recursos. Conforme já mencionado nos comentários anteriores, a carga tributária seria menor, se fosse aplicada exclusivamente para a seguridade social.

Em uma das obras de seu pai, não recordo agora qual específicamente, inclusive comentados por ele mesmo na ultima reunião do ICET, a reforma tributária é bem simples porém, acabaria com o emprego de muitos parlamentares com o fim da busca de recursos para seus redutos eleitorais, contribuição única na qual já estaria determinado o quanto vai para união, estados e municípios. Essa sem dúvidas é uma das melhores soluções.

Outro fator relevante que deve ser discutido é o imposto sobre a folha de pagamento, que em minhas humildes considerações, acho que em um país onde existe uma grande massa de desempregados, além do alto índice de trabalhadores informais, elevaria estes índices com a incidência de imposto sobre a folha. Gostaria da opinião dos senhores sobre o assunto.

Daniel Aragão

Anônimo disse...

Boa noite, Hugo!!
O tema de minha monografia de conclusão de curso é "A (in)conformidade do instituto de desvinculação de receita da Uniao, sob a ótica do Direito Tributário,com enfoque nas contribuiçoes sociais".
Gostaria de algumas sugestões
do que considera relevante abordar.
Se possível, me ajudaria bastante a sugestão de um sumário.
Após fazer um levantamento bibliográfico, senti um pouco de dificuldade em manter o foco.
Desde já agradeço as consideraçoes, que serão devidamente reconhecidas.
Michelle

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Michelle,
É um bom tema. Procure focar no que essencialmente caracteriza uma contribuição, e no que a DRU altera isso. Há diversos textos sobre o assunto.
Att.

Alexandre disse...

Professor Hugo, estou na reta final da pós em Direito Tributário da LFG, e estive pensando em escrever sobre a discussão em torno da não-cumulatividade da COFINS prevista no §12 do art. 195 da CF e a violação do princípio da isonomia na sua regulamentação. Depois de ver um post seu sobre a súmula vinculante nº 29, pensei em escrever sobre a base de cálculo das taxas, tendo em vista não só a má interpretação que a redação da nova súmula pode ensejar, como o dissenso jurisprudencial já existente em torno da fixação da mesma. O que acha? É mesmo um assunto tão controvertido e fértil quanto eu achei que é? Obrigado!

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Alexandre,
Os dois temas (não-cumulatividade e isonomia e base de cálculo das taxas) são muito interessantes.
O primeiro talvez seja mais atual e complexo, mais desafiador. O segundo, embora antigo, e já um pouco batido, foi de certa forma revitalizado pela súmula vinculante 29, estando a merecer alguns esclarecimentos. É um tema mais fácil, mas menos relevante.
Entretanto, insisto, ambos podem render uma boa monografia.