Ainda em relação à postagem anterior, lembrei haver publicado, em maio de 2003 (como o tempo passa rápido!), artigo que escrevi com a Raquel sobre a questão do formalismo processual, e da importância da forma.
Nele não tratamos especificamente da questão da prova de que o procurador é procurador (a ser "procurada" pela parte adversa), mas o fundamento usado na abordagem de outros formalismos análogos lhe serve perfeitamente. Talvez depois "atualize" esse texto, alterando um pouco sua fundamentação e passando a tratar especificamente dos novos exemplos de excesso de rigor quanto à forma processual.
Nele não tratamos especificamente da questão da prova de que o procurador é procurador (a ser "procurada" pela parte adversa), mas o fundamento usado na abordagem de outros formalismos análogos lhe serve perfeitamente. Talvez depois "atualize" esse texto, alterando um pouco sua fundamentação e passando a tratar especificamente dos novos exemplos de excesso de rigor quanto à forma processual.
A publicação aconteceu na Revista Dialética de Direito Processual (RDDP) n.° 2, periódico que, por sinal, recomendo a todos os que desejam se manter atualizados em questões processuais. Aproveitando todo o know-how obtido com a Revista Dialétita de Direito Tributário, já consagrada no meio como o melhor periódico na área (por conta de sua: periodicidade, pontualidade, atualidade, praticidade sem prejuízo do fundamento teórico dos artigos, relevância da jurisprudência selecionada etc.), a editora Dialética lançou revista análoga no âmbito processual, que publica artigos, pareceres e jurisprudência versando Direito Processual Civil, Penal e Teoria do Processo. Só temas especificamente "processuais tributários" continuam sendo veiculados na RDDT.
Pois bem. Lendo novamente o texto, fico com a impressão de que não está ruim (tanto que o estou veiculando), mas acho que, hoje, o escreveríamos de maneira um pouco diferente. Não na conclusão final, que mantemos, mas na maneira de dizer. Afinal, passaram-se cinco anos desde sua inicial formulação, e nesse período continuamos a maturar o assunto dos direitos fundamentais, do direito processual etc. Mas, fazendo essa ressalva - de que o texto foi publicado em maio de 2003 - resolvi postá-lo aqui. Aí vai:
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O Formalismo e a Instrumentalidade do Processo - Questões relativas à Instrução do Agravo de Instrumento
Hugo de Brito Machado Segundo
Advogado em Fortaleza
Membro da Comissão de Estudos Tributários da OAB/CE
Membro do ICET – Instituto Cearense de Estudos Tributários
Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Advogada em Fortaleza
Membro da Comissão de Estudos Tributários da OAB/CE
Membro do ICET – Instituto Cearense de Estudos Tributários
Introdução
Apesar de os princípios constitucionais processuais serem moderna e constantemente invocados pela doutrina, observa-se que a solução de muitos conflitos é prejudicada ou ignorada, no âmbito do Poder Judiciário, em favor de formalidades processuais estéreis. Argumenta-se, em defesa dessa postura, com o necessário cumprimento de dispositivos contidos na lei processual, nos quais referidas formalidades estariam previstas como necessárias ao exercício da jurisdição.
É certo que a observância das regras processuais, e das formalidades nelas exigidas, é muito importante. Basta examinar a história do Direito Processual e do princípio do devido processo legal, para demonstrá-lo. A forma é indispensável à contenção do arbítrio do julgador na condução do processo, e conseqüentemente, à efetividade de todas as garantias que daí decorrem para as partes. Além disso, a atribuição de uma forma adequada para cada tipo de pleito pode assegurar mais qualidade na prestação da tutela.
O formalismo, contudo, nem sempre atende às finalidades acima apontadas. Às vezes não leva a nada. E geralmente não é imposto pela regra processual, mas por seu intérprete, que a examina literal e isoladamente, sem a preocupação de buscar a finalidade da exigência, e de conciliar a norma que estabelece a formalidade com as demais normas do sistema, especialmente com as de cunho principiológico, consagradas na Constituição. Muitas vezes, ao mesmo tempo em que não se examina a finalidade da norma processual, não se consideram também as peculiaridades de cada caso concreto, para, então, verificar-se a adequação da norma hipoteticamente posta no Ordenamento, e a extensão dos seus efeitos, a esse mesmo caso.
O mais grave é que essa postura alheia ao caráter instrumental do processo, e aos princípios constitucionais que norteiam a sua disciplina, prejudica demasiadamente não apenas o jurisdicionado, mas o Poder Judiciário e o Ordenamento Jurídico como um todo. Combatê-la, por outro lado, é algo visto por muitos processualistas como uma afronta ao Direito Processual e à sua importância, o que não é verdade: trata-se de interpretar corretamente as normas de Direito Processual, as quais, assim como qualquer outra norma jurídica, têm uma finalidade, e estão inseridas em um sistema em cujo topo está a Constituição.
Com efeito, como qualquer norma jurídica, as regras processuais que impõem a observância de formalidades devem ser interpretadas de modo razoável e proporcional. É do que tratamos no presente trabalho, considerando, para tanto, alguns exemplos ocorridos na prática forense.
1. A Importância da forma
O que se espera do Poder Judiciário no desempenho da função jurisdicional é que entregue a tutela pleiteada pelo jurisdicionado do modo mais célere e simples possível. Essa tutela, porém, não há de ser qualquer uma, mas uma tutela efetiva, que resolva a lide de modo célere e eficaz, atendendo o pleito do autor se for seu o direito, ou negando-o em caso contrário[1]. E para prestar uma tutela efetiva é necessário que o juiz possa examinar com segurança as afirmações feitas em juízo pelas partes, afirmações essas que devem estar sujeitas à comprovação de sua veracidade. É necessário ainda que a parte possa conhecer as razões da decisão tomada pelo julgador, dela recorrendo, se for o caso.
Todos esses atos, para serem realizados de modo a conciliar a celeridade e a efetividade necessárias à tutela jurisdicional, precisam submeter-se a uma certa organização. Essa organização, por sua vez, pressupõe a atribuição de rito e forma aos atos e, assim, tem-se as formalidades processuais.
Essas formalidades impedem que cada julgador dê ao processo o curso e a forma que entender mais conveniente. A propósito, Chiovenda observa que a experiência...
“... tem demonstrado que as formas são necessárias no processo tanto ou mais que em qualquer relação jurídica; sua ausência carreia a desordem, a confusão e a incerteza.”[2]
José de Albuquerque Rocha, do mesmo modo, entende que:
“Hoje se conhece a necessidade das formas processuais, pois servem para controlar a legalidade da atuação das partes e, sobretudo, do órgão judicial. Assim, as formas procedimentais representam um relevante papel na atividade jurisdicional do Estado, servindo de garantia, sobretudo, para os direitos e liberdades dos usuários da justiça.”[3]
Mas não apenas. As formas, quando adequadas ao deferimento da tutela que se pleiteia ou ao ato qualquer que se pratica no processo, possibilitam que a atividade jurisdicional se desenvolva de modo mais eficaz. Nesse sentido é a lição de Luigi Paolo Comoglio, Corrado Ferri e Michele Tarufo:
"Com efeito, quando se diz, como acontece comumente, que o processo serve à atuação ou à tutela dos direitos, faz-se uma afirmação talvez não falsa, mas abstrata e um tanto genérica. O se e o como o processo desenvolve em concreto esta função são determinados pela qualidade e pela eficácia dos remédios processuais previstos pelo ordenamento em um dado momento histórico. Se esses instrumentos são poucos, dificilmente acessíveis e não adequados à natureza das situações substanciais carecedoras de tutela, a conseqüência é que a função de atuação e garantia dos direitos não se pode desenvolver completa e eficazmente. Se, ao contrário, o ordenamento processual conhece remédios diversificados, acessíveis de modo a poderem ser eficazmente empregados nas várias situações reais, então se pode dizer que o mesmo assegura a tutela jurisdicional dos direitos".[4].
Na verdade, porque estabelecida como meio de conciliar a segurança jurídica, a celeridade na prestação jurisdicional e a efetividade da tutela, a exigência de formalidades obedece a uma certa lógica, sempre decorrente de um desses fins, sendo certo que cada formalidade tem importância e finalidade próprias. Por exemplo, exige-se que o agravo de instrumento seja instruído com cópias das principais peças do processo, a fim de que o juízo ad quem tenha conhecimento de todos os aspectos da controvérsia apesar de não estar com os autos respectivos. Ainda no âmbito do agravo de instrumento, exige-se a cópia da certidão de intimação do agravante a fim de, também por não estar o juízo ad quem com os autos, verificar-se a tempestividade do recurso.
Como tudo que é estabelecido por conta de uma finalidade, não obstante a inegável importância das formas para os atos processuais, essa importância não pode ser considerada de modo absoluto, mas sempre condicionada à observância do fim a que se destina. A respeito, ensina José de Albuquerque Rocha que:
“O sistema da legalidade apresenta o risco de tornar-se rígido, gerando aquilo que costumamos chamar de formalismo. Foi para obviar esse inconveniente que surgiu a idéia de conceder ao juiz certos poderes de direção da atividade processual, entre os quais o de decidir, em cada caso concreto, quanto à adequação das formas, tendo em vista seu caráter instrumental em relação ao escopo objetivo do ato.”[5]
Realmente, exigir a observância da forma mesmo nas circunstâncias nas quais isso não atingirá o fim buscado (meio inapto); quando o fim puder ser atingido independente da formalidade (meio desnecessário), ou ainda quando os ônus oriundos da exigência da formalidade forem muito superiores aos bônus advindos de sua observância (desproporcional em sentido estrito), implica, em verdade, despreocupação com a importância prática das formalidades. Decorre ou de arbítrio ou de falta de razoabilidade, e, em todo caso, é inválida a exigência por falta de proporcionalidade.
2. Formalismo e Conflito de Direitos Fundamentais
Além do direito a uma tutela jurisdicional efetiva, que pode ser prestigiado, ou amesquinhado, pelo emprego devido ou indevido da forma processual, está em discussão também o princípio do devido processo legal, positivado em nossa Constituição Federal no inciso LIV de seu artigo 5.º, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
É certo que, em seu aspecto formal, o princípio do devido processo legal apenas impõe a existência de um processo disciplinado por leis previamente estabelecidas. Autorizaria a adoção de qualquer rito, de qualquer procedimento, de qualquer forma, desde que previstos em lei. A evolução da ciência jurídica, contudo, revelou no todo insuficiente essa acepção meramente formal. Para que a garantia seja efetiva, faz-se mister limitar, positiva e negativamente, o conteúdo das normas jurídicas que disciplinam o processo, a fim de garantir a igualdade das partes envolvidas, o contraditório e a ampla defesa, a racionalidade e a instrumentalidade do processo, etc. Chegou-se, assim, ao princípio em sua expressão substancial, cuja abrangência e prestígio, atribuídos especialmente pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, fazem dele matriz de vários outros princípios do ordenamento, inclusive do princípio da razoabilidade. Assim, o processo não deve apenas ser legal. Deve também ser devido, o que se entende por correto e adequado.
Por conta disso, a imposição de formalidades desnecessárias, ou inadequadas, pode aparentemente prestigiar o devido processo legal em seu aspecto formal. Entretanto, na medida em que “pode tornar-se um mal e até um veículo da injustiça”[6], malfere, com certeza, a mais nobre feição desse princípio, que é a substancial.
A propósito, como as formalidades processuais, e o processo como um todo, são meio através do qual é prestada a tutela jurisdicional, no todo pertinente, ainda, ao exame de sua validade, é a invocação do princípio da proporcionalidade[7], instrumento por excelência utilizado para o controle da adequação entre meios e fins. Esse controle é feito à luz de cada problema a ser resolvido, com a conciliação dos princípios e direitos fundamentais envolvidos[8]. É a metodologia hermenêutica do novo constitucionalismo e da moderna Teoria Geral do Direito, que se aplica com toda pertinência ao Direito Processual.
Pois bem. É sabido que o princípio da proporcionalidade se divide nos sub-princípios da aptidão, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Diz-se apto aquele meio cujo emprego realmente conduz à finalidade buscada. Necessário é o meio que além de apto é o menos oneroso. E, finalmente, uma vez apto e necessário, o ato será proporcional em sentido estrito quando sua realização, que ocorre em prestígio de um valor, não implicar um demasiado desprestígio de outros valores igualmente caros à ordem jurídica.
As formalidades a serem observadas no curso do processo, portanto, como todo meio utilizado à consecução de um fim legítimo, além de deverem obediência aos demais requisitos de validade exigidos pela ordem jurídica (v.g. previsão em lei), devem atender a esses três sub-princípios, sob pena de inconstitucionalidade por desproporcionalidade.
Como já tivemos a oportunidade de escrever[9], essa forma de “pensar” o Direito não é recente. Sempre existiram juristas que, embora respeitassem a forma jurídica, tinham suas preocupações voltadas também para os fins do Direito, considerando-o em seu conjunto e prestigiando-lhe as finalidades em face de cada caso concreto. Na verdade, o sopesamento de princípios, com a atenção ao problema concreto a ser resolvido, é inerente não apenas ao Direito, mas à conduta de uma maneira geral, frente à vida. Toda pessoa racional e de bom senso o realiza a cada passo, a cada escolha realizada. De todo modo, o mérito dos modernos estudiosos do Direito foi o de procurar teorizá-lo, explicando objetivamente como esse sopesamento deve ser feito, em inegável contribuição à hermenêutica e à metodologia jurídicas.
Para tornar mais clara a relação entre os princípios constitucionais e as formalidades processuais, o exame de algumas situações concretas pode ser útil. É do que cuida o item seguinte.
3. Exigências relativas ao traslado do agravo de instrumento
Como se sabe, o agravo de instrumento é recurso processado fora dos autos da causa na qual se deu a decisão impugnada[10], podendo ser interposto contra decisões interlocutórias do juízo de primeiro grau (CPC, art. 524) ou contra decisão do presidente do tribunal de apelação que inadmite recurso interposto aos Tribunais Superiores (CPC, art. 544).
Assim, como dito acima, para possibilitar ao julgador ad quem - que não possui os autos nos quais foi proferida a decisão agravada – avaliar o acerto ou não dessa decisão, o Código determina que o agravo seja instruído com cópia de algumas das peças contidas nesses autos.
No caso do agravo contra despacho proferido pelo juízo de primeiro grau, essas exigências estão contidas no art. 525 do CPC que determina:
“art. 525. A petição de agravo de instrumento será instruída:
I – obrigatoriamente, com cópias da decisão agravada, da certidão da respectiva intimação e das procurações outorgadas aos advogados do agravante e do agravada;
II – facultativamente, com outras peças que o agravante entender úteis.”
Já no caso do agravo contra despacho do Presidente do Tribunal de Apelação que inadmite recurso aos Tribunais Superiores, estas exigências são um pouco mais rigorosas. De fato, em face das limitadas hipóteses de cabimento dos Recursos Especial e Extraordinário, a verificação do acerto ou não da decisão agravada depende da análise das razões de recurso especial ou extraordinário – o recurso, por exemplo, pode ter sido rejeitado porque tratava de questão diversa da contida no acórdão recorrido. Além disso, diante desse agravo, o Tribunal Superior poderá não apenas verificar a correção da decisão que inadmitiu a subida do recurso, mas poderá também julgar logo o próprio recurso, sendo também por isso compreensíveis as exigências do art. 544, § 1º do CPC que dispõe:
“Art. 544. (...)
§ 1º - O agravo de instrumento será instruído com as peças apresentadas pelas partes, devendo constar, obrigatoriamente, sob pena de não conhecimento, cópia do acórdão recorrido, da petição de interposição do recurso denegado, das contra-razões, da decisão agravada, da certidão da respectiva intimação e das procurações outorgadas aos advogados do agravante e do agravado”*.
Duas questões então podem ser colocadas, na interpretação de tais dispositivos. A primeira, de saber se tais cópias precisam, necessariamente, estar autenticadas. E, a segunda, de saber qual deve ser a postura do julgador do agravo, quando faltar ao instrumento cópia de uma dessas peças, ou de uma ou alguma página das mesmas.
3.1. A autenticação das cópias juntadas à petição de agravo
Há julgados que exigem a autenticação de todas cópias componentes do agravo, as quais são consideradas como “inexistentes” quando não atendida essa formalidade. Isso mesmo quando nem a parte contrária, nem o julgador, põem em dúvida a autenticidade das cópias. É o que se afere dos seguintes acórdãos:
“...não se conhece do Agravo de Instrumento se as peças que o instruem não se encontram autenticadas, posto que meras xerocópias não têm a mesma força probante dos originais. A responsabilidade na formação do instrumento é do agravante, nos termos da lei. (...)”[11]
“(...) As peças trasladadas ao instrumento do agravo devem ser autenticadas como assentado em precedente da Corte. 2. Com a vigência da Lei nº 9139/95 já não mais se admite a conversão do processo em diligência para o cumprimento do disposto no art. 525, I, do Código de Processo Civil, ou para a regularização das peças apresentadas sem autenticação, na linha de precedentes da Corte. (...)”[12]
Esse entendimento, todavia, é equivocado. É desprovido de qualquer sentido ou propósito que, sem se questionar a veracidade das cópias integrantes do traslado do agravo de instrumento, exija-se a sua autenticação. Trata-se de claro exemplo de formalidade inapta a se chegar a qualquer fim, já que a autenticidade das cópias não é sequer posta em dúvida concretamente; desnecessária, porque a parte adversa pode aferir sua autenticidade mediante exame dos autos principais, aos quais tem livre acesso, e que podem, finalmente, ser enviados ao tribunal ad quem caso este entenda relevante; e desproporcional em sentido estrito, porque mutila os princípios do devido processo legal substantivo e da razoabilidade, bem como o direito à tutela recursal, para com isso assegurar tênue e duvidoso prestígio ao devido processo legal formal e à segurança jurídica. Aliás, a rigor, a exigência sequer encontra amparo em dispositivos da Lei Processual Civil.
Tanto é assim que a mesma está sendo afastada. No plano legislativo, permitiu-se que o próprio advogado declarasse a autenticidade de tais cópias, sob sua responsabilidade, no que toca ao agravo previsto no art. 544 do CPC, o que diminuiu bastante o ônus que essa exigência, quando necessária, pode trazer às partes[13]. Trata-se de dispositivo meramente explicitante, pois é óbvio que o advogado, ao subscrever a petição de agravo, está por ela – e pela autenticidade de tudo que a acompanha – assumindo inteira responsabilidade. Não se pode deixar de louvar o seu mérito, contudo, de afastar o equívoco consubstanciado nos acórdãos acima transcritos, deixando claro que essa declaração do advogado é suficiente.
Entretanto, é de se observar que existem agravos contra despachos denegatórios de recursos às Cortes Superiores – nos quais não se autenticaram as cópias, nem o advogado declarou expressamente a autenticidade das mesmas (embora isso esteja sempre evidentemente implícito) – que foram interpostos antes do advento da Lei n.º 10.352/2001 e ainda estão pendentes de julgamento. Ademais, não foram alterados os dispositivos que cuidam do agravo de instrumento interposto em face de decisões interlocutórias do juízo de primeiro grau. Nesses casos, deve ser prestigiado o entendimento jurisprudencial que tem procurado modificar o desacerto no qual incorreram os acórdãos antes referidos, e que afasta o formalismo em face de uma interpretação inteligente dos dispositivos da lei processual.
Essa evolução jurisprudencial evita não apenas a violação ao princípio do devido processo legal substantivo, mas também à isonomia, na medida em que os órgãos públicos já não se sujeitavam à exigência por força de dispositivo de Medida Provisória[14]. Hoje o entendimento prevalente no Superior Tribunal de Justiça é o seguinte:PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. AUTENTICAÇÃO DE DOCUMENTOS. DESNECESSIDADE. AGRAVO PROVIDO. SUBIDA DO RECURSO ESPECIAL.I - Desnecessária a autenticação de documentos cujos originais encontram-se presentes nos autos onde foi proferida a decisão;II - As peças trasladadas presumem-se verdadeiras se a parte contrária silencia quanto à autenticidade.III - Agravo Regimental provido a fim de que subam os autos do Recurso Especial para melhor exame.”[15]
“PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AUTENTICAÇÃO DE PEÇAS. DESNECESSIDADE. O artigo 525 do Código de Processo Civil, que dispõe sobre o modo como o agravo de instrumento deve ser instruído, não exige a autenticação das respectivas peças. Recurso especial não conhecido”[16].
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO DE DESPACHO DE JUIZ MONOCRÁTICO. FORMAÇÃO. PEÇAS NÃO AUTENTICADAS. RECURSO ESPECIAL. TEMA NÃO DEBATIDO. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA.
I. Não impugnada a autenticidade dos documentos que instruem o agravo de instrumento e em sendo sempre possível, na instância ordinária, o suprimento dessa exigência, é de ser a mesma afastada, consoante orientação recentemente firmada no REsp n. 248.341/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJU de 28.08.2000.
II. Recurso especial conhecido e provido”[17].
Julgando questão diversa, mas que cuida da mesma discussão de fundo, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça firmou o seguinte precedente, que inclusive vem sendo invocado por algumas de suas Turmas para conhecer de agravos de instrumentos instruídos com cópias não autenticadas, nos termos das decisões já transcritas acima:
“PROCESSUAL - PETIÇÃO INICIAL - FOTOCÓPIAS NÃO AUTENTICADAS - INDEFERIMENTO LIMINAR.
I - Não é lícito ao juiz estabelecer, para as petições iniciais, requisitos não previstos nos artigos 282 e 283 do CPC. Por isso, não lhe é permitido indeferir liminarmente o pedido, ao fundamento de que as cópias que o instruem carecem de autenticação.
II - O documento ofertado pelo autor presume-se verdadeiro, se o demandado, na resposta, silencia quanto à autenticidade (CPC, Art. 372)”[18].
No âmbito do Supremo Tribunal Federal o problema vem recebendo o mesmo lúcido tratamento. Julgando embargos de declaração no agravo regimental no agravo de instrumento, a Primeira Turma do STF examinou o inconformismo da Fazenda Nacional quanto a não estarem autenticadas peças componentes do traslado feito pela parte adversa. O acórdão porta a seguinte ementa:
“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. FORMAÇÃO DO INSTRUMENTO. AUTENTICAÇÃO DE PEÇAS. DESNECESSIDADE. CONTRADIÇÃO E OBSCURIDADE. INOCORRÊNCIA.
1. Na forma do § 1.º do artigo 544 do CPC, o instrumento que acompanha a petição do agravo é formado por cópias de peças extraídas dos autos principais, nada aduzindo a lei sobre a exigência de autenticação. Presunção de veracidade dos documentos comuns às partes, passível de ser afastada apenas mediante impugnação por vício de ordem material.
2. A disciplina do artigo 384 do CPC diz respeito às provas produzidas durante a instrução processual para embasar ou contraditar o direito material em litígio, sendo inaplicável à formação do agravo, cujos documentos têm clara função instrumental.
3. Não configuradas no acórdão recorrido as hipóteses previstas nos incisos do artigo 535 do Código de Processo Civil, restam inviabilizados os embargos declaratórios. Embargos de declaração rejeitados”[19].
E nem poderia mesmo ser diferente. Assim, é de se esperar que o entendimento consagrado nas decisões acima transcritas seja definitivamente acolhido por nossas Cortes Superiores, sendo adotado também pelas Turmas do Superior Tribunal de Justiça que ainda proferem acórdãos dele divergentes.
Seja como for, no que diz respeito aos agravos de instrumento a serem doravante interpostos, é recomendável que, por cautela, e em face do disposto no art. 544, § 1.º do CPC, com a redação dada pela Lei n.º 10.352/2001, o próprio advogado expressamente declare autenticas todas as peças constantes do instrumento, a fim de evitar eventuais questionamentos a respeito da questão. E, ao fazê-lo, é recomendável também que junte cópia não apenas das peças exigidas, mas, se possível, de todas as folhas dos autos, especialmente quando se tratar do agravo de instrumento referido no art. 544 do CPC, pois nesse último caso o Tribunal Superior poderá convertê-lo no respectivo recurso especial, ou extraordinário, e julgar desde logo o cerne da questão, com notável resultado para a economia e a celeridade processuais.
3.2. Ausência de peças obrigatórias ao traslado do agravo
Outro ponto assaz questionado, no que pertine à formação do traslado do agravo de instrumento, principalmente no que toca ao agravo previsto no art. 544 do CPC (interposto contra despacho do presidente do tribunal de apelação que nega seguimento ao recurso aos tribunais superiores), é o relativo à ausência de cópias de peças obrigatórias.
A exigência da cópia de algumas das peças dos autos principais, como dito acima, é válida, no plano hipotético, na medida em que tem por fim possibilitar que o juízo ad quem tenha conhecimento de todos os aspectos da controvérsia apesar de não estar com os autos respectivos. É por conta dessa finalidade que o CPC enumera tanto no art. 525, como no art. 544. § 1º as peças que, em regra, são essenciais para a compreensão da controvérsia. Interpretando essas normas a Súmula 288 do STF - elaborada quando sua competência abrangia a que hoje é do STJ - dispõe:
“Nega-se provimento a agravo para subida de recurso extraordinário, quando faltar no traslado o despacho agravado, a decisão recorrida, a petição de recurso extraordinário ou qualquer peça essencial à compreensão da controvérsia.” (grifou-se)
Essa exigência, contudo, tem sido desnaturada quando de sua aplicação concreta, pois é feita sem a preocupação de conciliar a finalidade buscada pela norma com as peculiaridades de cada caso concreto. Realmente, mesmo nos casos em que a presença do documento não é essencial para o exame da lide, ou sua ausência não pode ser imputada ao agravante, a cópia do seu inteiro teor é exigida como condição para o conhecimento do agravo. E não é permitida qualquer espécie de suprimento ou retificação posterior.
Com efeito, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm feito interpretação bastante rigorosa do § 1º do art. 544 do CPC. Não conhecem de agravos de instrumento nos quais, por equívoco, falta apenas uma folha de uma das citadas peças, ou, pior, nos quais não consta uma das citadas peças porque a mesma não existe nos próprios autos do processo principal, e a parte agravante não junta certidão dando conta dessa ausência.
Confira-se, a propósito, as seguintes ementas:“PROCESSO CIVIL – AGRAVO DE INSTRUMENTO – NÃO CONHECIMENTO – AG. REGIMENTAL – LOCAÇÃO COMERCIAL – TRASLADO OBRIGATÓRIO – AUSÊNCIA DE PEÇAS – ART. 544, § 1º, DO CPC – SÚMULA 223/STJ - FALTA DE AUTENTICAÇÃO - ARTS. 365, III E 384, AMBOS DO CPC.1 – As peças elencadas no art. 544, §. 1º, do Código de Processo Civil são de traslado obrigatório, sob pena de não conhecimento do Agravo de Instrumento. Assim, a cópia das contra-razões ao Recurso Especial, ou a certidão de sua não apresentação, tida como inserida neste rol, deve figurar na formação de tal recurso. Aplicação da Súmula 223/STJ (cf. AgRg AG nºs 253.935/SP e 246.014/DF). (...).[20]
“Se a peça de traslado obrigatório, como as contra-razões do recurso extraordinário ou a procuração outorgada ao advogado do agravado, não consta dos autos de que deveria ser extraída sua cópia, tem o agravante o dever de juntar aos autos do agravo certidão dessa ausência, sob pena de não conhecimento do agravo, como decorre da exigência do art. 544, §1.º, do CPC.”[21]
Por curioso, apesar de fazer interpretação literalista do artigo quando falta alguma das peças nele enumeradas, mesmo no caso em que a peça ou parte dela não existe, ou não é essencial para o exame da lide, a Jurisprudência faz interpretação ampliativa do §1.º do art. 544 do CPC, quando se trata de exigir outras peças além das enumeradas nessa norma. Para tanto, esses julgados invocam a finalidade da norma, tantas vezes ignorada. Em geral, tanto a consideração dessa finalidade, como seu desprezo, ocorrem quando destinados ao não conhecimento do recurso:
“É inadmissível agravo de instrumento tendente a viabilizar a subida de recurso especial, se não há prova nos autos da interposição de agravo de instrumento para o Colendo Supremo Tribunal Federal contra decisão que indeferiu o processamento do recurso extraordinário. O elenco de peças do art. 544, § 1.º, do CPC, é meramente exemplificativo, condizente com o entendimento de que outra peças - tal qual a certidão comprobatória de interposição de agravo para o STF - são absolutamente indispensáveis, porquanto rematada obscuridade jurídica constituiria a decisão provedora de agravo instrumentado, determinando a subida à instância derradeira de recurso especial, quando já vislumbrado o possível trânsito em julgado do fundamento constitucional suficiente.”[22]
Parece-nos, porém, que essa interpretação quanto às condições para o conhecimento do agravo deve ser repensada. Muitas vezes implica negar o direito do jurisdicionado à prestação da tutela recursal, mediante exigências excessivamente gravosas, desnecessárias e ainda desvinculadas do alcance e da finalidade da norma que as estabelece. E, pior, completamente irracional à luz de muitos casos concretos[23].
Quanto ao casos em que não existe, nos próprios autos da ação principal, a peça exigida na instrução do agravo, o não conhecimento desse recurso, porque a parte agravante não juntou certidão declarando essa ausência, deve ser decidido com muita cautela e cuidado com a “padronização” de julgados. Primeiro, porque essa ausência pode ser percebida, em alguns casos, mediante exame da própria seqüência da numeração das páginas dos autos principais. Segundo, porque pode haver, em alguma outra peça juntada ao agravo, referência a essa ausência, o que torna claramente desnecessária a exigência de certidão atestando o mesmo fato. Em casos assim, o Supremo Tribunal Federal tem considerado “superada a falta das contra-razões pela afirmação, pela decisão agravada, da inexistência das mesmas”[24].
Além disso, se a peça está ausente nos autos principais, por óbvio não é essencial para o exame da controvérsia, que seria feito normalmente sem a mesma, caso o Presidente do Tribunal a quo tivesse admitido o recurso especial ou extraordinário. Nada obsta, portanto, que o Tribunal adote a postura menos gravosa e igualmente útil de assegurar oportunidade para o agravante retificar o traslado e apresentar a certidão exigida, até porque, nesse caso, não se trata da inclusão de uma peça com conteúdo substancialmente novo nos autos do agravo, mas apenas de esclarecimento acerca da completude do traslado já devidamente formado.
A mesma razoabilidade deve orientar a postura do Tribunal quando a peça ausente do traslado é a certidão de intimação do agravante. Há casos, especial mas não exclusivamente no que tange ao agravo previsto no art. 524 do CPC, em que entre a data da assinatura do despacho agravado, e a data em que protocolizada a petição de agravo, transcorrem menos de 15 dias, mas, ainda assim, o agravo não é conhecido por falta da certidão de intimação, em face da qual seria “aferida” a sua tempestividade. Ora, se a tempestividade transparece evidente de outras peças do traslado, a exigência da certidão afigura-se estéril e inútil, inapta a se chegar a qualquer fim, e absolutamente desnecessária. Não encontra validade na ordem jurídica, além de implicar evidente e grave desprezo pela realidade posta em juízo. A situação é tão absurda quanto a de um aposentado que, tido como morto pelo INSS em face do falecimento de um homônimo seu, comparece à repartição respectiva munido de todos os seus documentos, mas não é considerado vivo até que apresente um “atestado de vida” firmado por médico do INSS.
Ainda no que pertine à certidão de intimação, mesmo quando essa tempestividade é certificada pelo Tribunal a quo, agravos interpostos com arrimo no art. 544 do CPC deixam freqüentemente de ser conhecidos por conta de estar ilegível o carimbo em face do qual poderia ser aferida a sua tempestividade, ou a tempestividade do recurso especial ou extraordinário, ou porque por qualquer outra razão não consta do traslado documento que ateste a data das respectivas intimações:
“Se o carimbo de protocolo do recebimento do recurso especial não permite a aferição da tempestividade na sua interposição, caberia à parte obter certidão sanando o vício ainda na instância ‘a quo’, antes da subida do recurso. Não o fazendo, então, torna-se impossível o conhecimento do agravo de instrumento”[25].
“A certidão da Secretaria do Tribunal ‘a quo’, declarando que o recurso extraordinário foi interposto dentro do prazo, não substitui, evidentemente, a certidão de publicação do acórdão recorrido, porquanto é por meio desta, e não daquela, que se pode verificar tempestividade ou intempestividade do recurso e, portanto, o acerto, ou não, da certidão da Secretaria”[26].
Nesses casos, não se considera suficiente que o Tribunal a quo afirme a tempestividade do recurso, por meio de seu Presidente, ou de seus servidores. Exige-se ainda que conste do instrumento também a certidão de intimação, a fim de que o Tribunal ad quem avalie a veracidade dessa afirmação, o que é completamente despropositado, data maxima venia. Primeiro, porque a indicação da tempestividade do recurso especial ou extraordinário, ou do agravo, em outras peças, atende à mesma finalidade da certidão de intimação, sendo claramente desproporcional não conhecer do agravo porque tal informação não consta de certidão ou de carimbo específico, este último de ilegibilidade nem sempre imputável ao agravante. Segundo, porque não é razoável presumir, ainda mais de ofício, a falsidade das declarações emanadas do Tribunal a quo.
3.3. Ausência de partes de peças obrigatórias ao traslado do agravo
No que diz respeito à ausência de parte de alguma peça essencial ao traslado, a questão não é de tão fácil deslinde, e demanda ainda maior atenção para cada caso concreto, o que os Tribunais, talvez pelo elevado volume de trabalho a que estão submetidos, não vêm fazendo. Em julgamentos padronizados, que malferem o próprio conceito de jurisdição, deixa-se de conhecer de todo e qualquer agravo ao qual falte uma folha sequer de um dos documentos mencionados no art. 525, I, ou, o que se dá com mais freqüência, no § 1.º do art. 544, ambos do CPC.
Suponha-se que a questão verse Direito Societário, e o despacho agravado, que negara seguimento a um recurso especial, afirme não haver sido prequestionado, sendo inteiramente alheio à controvérsia, determinado artigo da Lei n.º 6.404/76, cuja negativa de vigência é o fundamento do recurso obstaculizado. Parece claro, nesta hipótese, que só mediante cópia de todas as peças referidas no art. 544, § 1.º do CPC o cabimento do recurso especial poderá ser examinado. Se faltar ao instrumento precisamente a cópia da folha na qual o acórdão recorrido fazia referência aos dispositivos da lei federal tidos por violados, por exemplo, inegável será a impossibilidade de se conhecer do agravo.
Imagine-se, porém, que se trata de uma lide tributária, na qual um contribuinte, organizado sob a forma de sociedade por ações, discute a validade de lançamento do imposto de renda previsto no art. 35 da Lei 7.713/88, já proclamado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. O Tribunal de Apelação, no entanto, considera constitucional a citada exigência de imposto de renda, e nega seguimento ao Recurso Extraordinário do contribuinte por entender que a questão constitucional não está devidamente prequestionada, apesar de os dispositivos constitucionais pertinentes haverem sido discutidos à exaustão no acórdão, que afinal tratava da argüição de inconstitucionalidade de uma lei. Diante dessa situação, o contribuinte interpõe agravo de instrumento, e junta cópia não apenas de toda a documentação exigida pelo art. 544, § 1.º, do CPC, como de todas as demais folhas dos autos. Mas, por equívoco diante do volumoso número de documentos, folhas e autenticações, deixa de juntar cópia de uma folha de suas razões de recurso extraordinário, folha intermediária, na qual havia apenas citações de doutrina. Mediante simples leitura das razões de Recurso Extraordinário, pode-se concluir que a ausência da mesma não muda o conhecimento da lide. Citada folha é ainda juntada posteriormente, quando os autos do agravo já estão no Supremo Tribunal Federal, não com a finalidade de suprir a “falta”, mas apenas para demonstrar a sua irrelevância no deslinde da controvérsia. E, por cautela, para evitar embaraçar o seu evidente direito material por conta do formalismo, e ciente da irrelevância da solitária folha de seu recurso que não havia sido anteriormente juntada, a parte pede nessa ocasião que o seu recurso seja considerado como se não possuísse a citada folha quando de sua interposição.
Note-se que, nesse último exemplo, toda a controvérsia pode ser devidamente compreendida pelo Supremo Tribunal Federal. O despacho agravado pode ter o seu equívoco constatado pela leitura do próprio acórdão recorrido. As razões (embora sem uma de suas folhas) e as contra-razões de Recurso Extraordinário, do mesmo modo, possibilitam vislumbrar a questão posta no recurso, e o seu respectivo cabimento. Finalmente, a juntada posterior da folha ausente demonstrou a sua irrelevância, e, ainda que assim não fosse, teria suprido inteiramente a falta.
Não obstante tudo isso, em casos assim, o Pretório Excelso tem decidido que “para que se cumpra o disposto no art. 544, § 1.º, do CPC, faz-se necessária a juntada, ao traslado, do inteiro teor das razões de recurso extraordinário, sob pena de não conhecimento do agravo de instrumento”. Tudo isso mesmo quando a omissão é de uma insignificante folha, e “ainda que a matéria já se encontre pacificada nesta Corte”[27]. Isso porque, em regra, os Tribunais não examinam a relevância da folha ausente, nem se a falta causa qualquer prejuízo à compreensão da controvérsia. Interpretam literalmente a expressão “inteiro teor” constante do art. 544, § 1.º, do CPC, sem cogitar se a formalidade é realmente útil, necessária e proporcional.
Esse formalismo inútil vem sendo corrigido pela moderna processualística, que superou a chamada linha “técnico-científica” do Direito Processual, instaurando “onda renovatória que se preocupa com os aspectos sociais e políticos do processo”[28]. Alguns julgados, contudo, não acompanham esse entendimento e adotam posturas merecedoras da secular e autorizada crítica de Hegel:
“Com a sua divisão em atos sempre mais particulares e nos direitos correspondentes, segundo uma complicação que não tem limite em si mesma, o processo, que começara por ser um meio, passa a distinguir-se da sua finalidade como algo de extrínseco”[29].
Em verdade, fazer exigências do gênero, a pretexto de preservar o princípio do devido processo legal em seu aspecto formal (finalidade para a qual já se viu que não é necessária), mutila-o, como dito, em seu sentido substancial, além de malferir os dispositivos que tratam do cabimento do recurso ao Supremo Tribunal Federal. Isso sem considerar que deixa incólume uma violação reconhecida à Constituição Federal, mantendo pessoas com o mesmo direito material em situação de desigualdade. Tudo em prol de interpretação de duvidosa procedência de um dispositivo contido em uma regra legal. Enfim, medida claramente desproporcional em sentido estrito, inteiramente divorciada da realidade posta à apreciação do Judiciário.
É de se ressaltar, porém, que a questão é outra caso, à luz de determinada lide, o Tribunal conclua pela indispensabilidade da cópia ausente no traslado – porque a falta realmente impossibilita o conhecimento completo da controvérsia – e ainda conclua pela impossibilidade de suprimento posterior dessa falta, fundamentando tais pontos à luz do caso concreto ao deixar de conhecer o agravo de instrumento. Diante de julgados desse teor, nada se lhes pode opor, porque a falta de parte da cópia malfere a norma em sua finalidade. Inaceitável, porém, é que a exigência seja feita de modo irracional e automático, por meio de decisões de igual conteúdo para os casos em que a formalidade realmente é indispensável, e para os casos em que é completamente desnecessária e inútil.
Os danos causados por esse tipo de compreensão não são poucos, e não se resumem aos princípios constitucionais processuais diretamente implicados. Basta ver a quantidade de ações rescisórias interpostas por conta, exclusivamente, do não conhecimento intransigente de recursos dirigidos às Cortes Superiores, e as inúmeras perplexidades sobre as quais a doutrina processualística se está deparando quanto ao cabimento dessas ações[30]. O formalismo cria, em situações assim, profunda desigualdade e injustiça.
Conclusão
Do exame dos acórdãos acima transcritos, elencados de modo meramente exemplificativo, percebe-se que o formalismo está sendo empregado como tentativa de afastar a apreciação do grande volume de lides submetidas ao Poder Judiciário. Esse emprego das formas processuais, todavia, representa solução desaconselhável para o problema, entre outras razões, porque:
a) implica amesquinhamento da função jurisdicional, uma vez que aumenta os julgados que examinam questão meramente processual e ignoram o pronunciamento sobre o direito material das partes.
b) enseja uma eliminação irracional de processos, o que faz com que demandas de alta relevância sejam “não conhecidas”, enquanto outras, protelatórias ou irrelevantes, sejam cuidadosamente deslindadas; e, ainda,
c) não implica uma diminuição no volume de processos submetidos à apreciação do Judiciário, mas sim um acréscimo, pois infindáveis recursos são manejados na tentativa de reverter a irracional exigência da forma, culminando, muitas vezes, na ulterior interposição de ação rescisória, quando tudo poderia ser resolvido de modo célere e eficaz mediante uma interpretação racional das normas processuais.
Por tudo isso, é assaz relevante o emprego, também no âmbito do Direito Processual, das modernas técnicas de hermenêutica, que, diante da reconhecida insuficiência de uma lógica dedutiva de subsunção da norma literalmente considerada ao fato nela previsto, preconiza a devida atenção às peculiaridades de cada caso concreto, prestigiando-se o sistema jurídico como um todo, especialmente os princípios constitucionais, que devem ser racionalmente conciliados.
Hugo de Brito Machado Segundo
Advogado em Fortaleza
Membro da Comissão de Estudos Tributários da OAB/CE
Membro do ICET – Instituto Cearense de Estudos Tributários
Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Advogada em Fortaleza
Membro da Comissão de Estudos Tributários da OAB/CE
Membro do ICET – Instituto Cearense de Estudos Tributários
Introdução
Apesar de os princípios constitucionais processuais serem moderna e constantemente invocados pela doutrina, observa-se que a solução de muitos conflitos é prejudicada ou ignorada, no âmbito do Poder Judiciário, em favor de formalidades processuais estéreis. Argumenta-se, em defesa dessa postura, com o necessário cumprimento de dispositivos contidos na lei processual, nos quais referidas formalidades estariam previstas como necessárias ao exercício da jurisdição.
É certo que a observância das regras processuais, e das formalidades nelas exigidas, é muito importante. Basta examinar a história do Direito Processual e do princípio do devido processo legal, para demonstrá-lo. A forma é indispensável à contenção do arbítrio do julgador na condução do processo, e conseqüentemente, à efetividade de todas as garantias que daí decorrem para as partes. Além disso, a atribuição de uma forma adequada para cada tipo de pleito pode assegurar mais qualidade na prestação da tutela.
O formalismo, contudo, nem sempre atende às finalidades acima apontadas. Às vezes não leva a nada. E geralmente não é imposto pela regra processual, mas por seu intérprete, que a examina literal e isoladamente, sem a preocupação de buscar a finalidade da exigência, e de conciliar a norma que estabelece a formalidade com as demais normas do sistema, especialmente com as de cunho principiológico, consagradas na Constituição. Muitas vezes, ao mesmo tempo em que não se examina a finalidade da norma processual, não se consideram também as peculiaridades de cada caso concreto, para, então, verificar-se a adequação da norma hipoteticamente posta no Ordenamento, e a extensão dos seus efeitos, a esse mesmo caso.
O mais grave é que essa postura alheia ao caráter instrumental do processo, e aos princípios constitucionais que norteiam a sua disciplina, prejudica demasiadamente não apenas o jurisdicionado, mas o Poder Judiciário e o Ordenamento Jurídico como um todo. Combatê-la, por outro lado, é algo visto por muitos processualistas como uma afronta ao Direito Processual e à sua importância, o que não é verdade: trata-se de interpretar corretamente as normas de Direito Processual, as quais, assim como qualquer outra norma jurídica, têm uma finalidade, e estão inseridas em um sistema em cujo topo está a Constituição.
Com efeito, como qualquer norma jurídica, as regras processuais que impõem a observância de formalidades devem ser interpretadas de modo razoável e proporcional. É do que tratamos no presente trabalho, considerando, para tanto, alguns exemplos ocorridos na prática forense.
1. A Importância da forma
O que se espera do Poder Judiciário no desempenho da função jurisdicional é que entregue a tutela pleiteada pelo jurisdicionado do modo mais célere e simples possível. Essa tutela, porém, não há de ser qualquer uma, mas uma tutela efetiva, que resolva a lide de modo célere e eficaz, atendendo o pleito do autor se for seu o direito, ou negando-o em caso contrário[1]. E para prestar uma tutela efetiva é necessário que o juiz possa examinar com segurança as afirmações feitas em juízo pelas partes, afirmações essas que devem estar sujeitas à comprovação de sua veracidade. É necessário ainda que a parte possa conhecer as razões da decisão tomada pelo julgador, dela recorrendo, se for o caso.
Todos esses atos, para serem realizados de modo a conciliar a celeridade e a efetividade necessárias à tutela jurisdicional, precisam submeter-se a uma certa organização. Essa organização, por sua vez, pressupõe a atribuição de rito e forma aos atos e, assim, tem-se as formalidades processuais.
Essas formalidades impedem que cada julgador dê ao processo o curso e a forma que entender mais conveniente. A propósito, Chiovenda observa que a experiência...
“... tem demonstrado que as formas são necessárias no processo tanto ou mais que em qualquer relação jurídica; sua ausência carreia a desordem, a confusão e a incerteza.”[2]
José de Albuquerque Rocha, do mesmo modo, entende que:
“Hoje se conhece a necessidade das formas processuais, pois servem para controlar a legalidade da atuação das partes e, sobretudo, do órgão judicial. Assim, as formas procedimentais representam um relevante papel na atividade jurisdicional do Estado, servindo de garantia, sobretudo, para os direitos e liberdades dos usuários da justiça.”[3]
Mas não apenas. As formas, quando adequadas ao deferimento da tutela que se pleiteia ou ao ato qualquer que se pratica no processo, possibilitam que a atividade jurisdicional se desenvolva de modo mais eficaz. Nesse sentido é a lição de Luigi Paolo Comoglio, Corrado Ferri e Michele Tarufo:
"Com efeito, quando se diz, como acontece comumente, que o processo serve à atuação ou à tutela dos direitos, faz-se uma afirmação talvez não falsa, mas abstrata e um tanto genérica. O se e o como o processo desenvolve em concreto esta função são determinados pela qualidade e pela eficácia dos remédios processuais previstos pelo ordenamento em um dado momento histórico. Se esses instrumentos são poucos, dificilmente acessíveis e não adequados à natureza das situações substanciais carecedoras de tutela, a conseqüência é que a função de atuação e garantia dos direitos não se pode desenvolver completa e eficazmente. Se, ao contrário, o ordenamento processual conhece remédios diversificados, acessíveis de modo a poderem ser eficazmente empregados nas várias situações reais, então se pode dizer que o mesmo assegura a tutela jurisdicional dos direitos".[4].
Na verdade, porque estabelecida como meio de conciliar a segurança jurídica, a celeridade na prestação jurisdicional e a efetividade da tutela, a exigência de formalidades obedece a uma certa lógica, sempre decorrente de um desses fins, sendo certo que cada formalidade tem importância e finalidade próprias. Por exemplo, exige-se que o agravo de instrumento seja instruído com cópias das principais peças do processo, a fim de que o juízo ad quem tenha conhecimento de todos os aspectos da controvérsia apesar de não estar com os autos respectivos. Ainda no âmbito do agravo de instrumento, exige-se a cópia da certidão de intimação do agravante a fim de, também por não estar o juízo ad quem com os autos, verificar-se a tempestividade do recurso.
Como tudo que é estabelecido por conta de uma finalidade, não obstante a inegável importância das formas para os atos processuais, essa importância não pode ser considerada de modo absoluto, mas sempre condicionada à observância do fim a que se destina. A respeito, ensina José de Albuquerque Rocha que:
“O sistema da legalidade apresenta o risco de tornar-se rígido, gerando aquilo que costumamos chamar de formalismo. Foi para obviar esse inconveniente que surgiu a idéia de conceder ao juiz certos poderes de direção da atividade processual, entre os quais o de decidir, em cada caso concreto, quanto à adequação das formas, tendo em vista seu caráter instrumental em relação ao escopo objetivo do ato.”[5]
Realmente, exigir a observância da forma mesmo nas circunstâncias nas quais isso não atingirá o fim buscado (meio inapto); quando o fim puder ser atingido independente da formalidade (meio desnecessário), ou ainda quando os ônus oriundos da exigência da formalidade forem muito superiores aos bônus advindos de sua observância (desproporcional em sentido estrito), implica, em verdade, despreocupação com a importância prática das formalidades. Decorre ou de arbítrio ou de falta de razoabilidade, e, em todo caso, é inválida a exigência por falta de proporcionalidade.
2. Formalismo e Conflito de Direitos Fundamentais
Além do direito a uma tutela jurisdicional efetiva, que pode ser prestigiado, ou amesquinhado, pelo emprego devido ou indevido da forma processual, está em discussão também o princípio do devido processo legal, positivado em nossa Constituição Federal no inciso LIV de seu artigo 5.º, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
É certo que, em seu aspecto formal, o princípio do devido processo legal apenas impõe a existência de um processo disciplinado por leis previamente estabelecidas. Autorizaria a adoção de qualquer rito, de qualquer procedimento, de qualquer forma, desde que previstos em lei. A evolução da ciência jurídica, contudo, revelou no todo insuficiente essa acepção meramente formal. Para que a garantia seja efetiva, faz-se mister limitar, positiva e negativamente, o conteúdo das normas jurídicas que disciplinam o processo, a fim de garantir a igualdade das partes envolvidas, o contraditório e a ampla defesa, a racionalidade e a instrumentalidade do processo, etc. Chegou-se, assim, ao princípio em sua expressão substancial, cuja abrangência e prestígio, atribuídos especialmente pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, fazem dele matriz de vários outros princípios do ordenamento, inclusive do princípio da razoabilidade. Assim, o processo não deve apenas ser legal. Deve também ser devido, o que se entende por correto e adequado.
Por conta disso, a imposição de formalidades desnecessárias, ou inadequadas, pode aparentemente prestigiar o devido processo legal em seu aspecto formal. Entretanto, na medida em que “pode tornar-se um mal e até um veículo da injustiça”[6], malfere, com certeza, a mais nobre feição desse princípio, que é a substancial.
A propósito, como as formalidades processuais, e o processo como um todo, são meio através do qual é prestada a tutela jurisdicional, no todo pertinente, ainda, ao exame de sua validade, é a invocação do princípio da proporcionalidade[7], instrumento por excelência utilizado para o controle da adequação entre meios e fins. Esse controle é feito à luz de cada problema a ser resolvido, com a conciliação dos princípios e direitos fundamentais envolvidos[8]. É a metodologia hermenêutica do novo constitucionalismo e da moderna Teoria Geral do Direito, que se aplica com toda pertinência ao Direito Processual.
Pois bem. É sabido que o princípio da proporcionalidade se divide nos sub-princípios da aptidão, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Diz-se apto aquele meio cujo emprego realmente conduz à finalidade buscada. Necessário é o meio que além de apto é o menos oneroso. E, finalmente, uma vez apto e necessário, o ato será proporcional em sentido estrito quando sua realização, que ocorre em prestígio de um valor, não implicar um demasiado desprestígio de outros valores igualmente caros à ordem jurídica.
As formalidades a serem observadas no curso do processo, portanto, como todo meio utilizado à consecução de um fim legítimo, além de deverem obediência aos demais requisitos de validade exigidos pela ordem jurídica (v.g. previsão em lei), devem atender a esses três sub-princípios, sob pena de inconstitucionalidade por desproporcionalidade.
Como já tivemos a oportunidade de escrever[9], essa forma de “pensar” o Direito não é recente. Sempre existiram juristas que, embora respeitassem a forma jurídica, tinham suas preocupações voltadas também para os fins do Direito, considerando-o em seu conjunto e prestigiando-lhe as finalidades em face de cada caso concreto. Na verdade, o sopesamento de princípios, com a atenção ao problema concreto a ser resolvido, é inerente não apenas ao Direito, mas à conduta de uma maneira geral, frente à vida. Toda pessoa racional e de bom senso o realiza a cada passo, a cada escolha realizada. De todo modo, o mérito dos modernos estudiosos do Direito foi o de procurar teorizá-lo, explicando objetivamente como esse sopesamento deve ser feito, em inegável contribuição à hermenêutica e à metodologia jurídicas.
Para tornar mais clara a relação entre os princípios constitucionais e as formalidades processuais, o exame de algumas situações concretas pode ser útil. É do que cuida o item seguinte.
3. Exigências relativas ao traslado do agravo de instrumento
Como se sabe, o agravo de instrumento é recurso processado fora dos autos da causa na qual se deu a decisão impugnada[10], podendo ser interposto contra decisões interlocutórias do juízo de primeiro grau (CPC, art. 524) ou contra decisão do presidente do tribunal de apelação que inadmite recurso interposto aos Tribunais Superiores (CPC, art. 544).
Assim, como dito acima, para possibilitar ao julgador ad quem - que não possui os autos nos quais foi proferida a decisão agravada – avaliar o acerto ou não dessa decisão, o Código determina que o agravo seja instruído com cópia de algumas das peças contidas nesses autos.
No caso do agravo contra despacho proferido pelo juízo de primeiro grau, essas exigências estão contidas no art. 525 do CPC que determina:
“art. 525. A petição de agravo de instrumento será instruída:
I – obrigatoriamente, com cópias da decisão agravada, da certidão da respectiva intimação e das procurações outorgadas aos advogados do agravante e do agravada;
II – facultativamente, com outras peças que o agravante entender úteis.”
Já no caso do agravo contra despacho do Presidente do Tribunal de Apelação que inadmite recurso aos Tribunais Superiores, estas exigências são um pouco mais rigorosas. De fato, em face das limitadas hipóteses de cabimento dos Recursos Especial e Extraordinário, a verificação do acerto ou não da decisão agravada depende da análise das razões de recurso especial ou extraordinário – o recurso, por exemplo, pode ter sido rejeitado porque tratava de questão diversa da contida no acórdão recorrido. Além disso, diante desse agravo, o Tribunal Superior poderá não apenas verificar a correção da decisão que inadmitiu a subida do recurso, mas poderá também julgar logo o próprio recurso, sendo também por isso compreensíveis as exigências do art. 544, § 1º do CPC que dispõe:
“Art. 544. (...)
§ 1º - O agravo de instrumento será instruído com as peças apresentadas pelas partes, devendo constar, obrigatoriamente, sob pena de não conhecimento, cópia do acórdão recorrido, da petição de interposição do recurso denegado, das contra-razões, da decisão agravada, da certidão da respectiva intimação e das procurações outorgadas aos advogados do agravante e do agravado”*.
Duas questões então podem ser colocadas, na interpretação de tais dispositivos. A primeira, de saber se tais cópias precisam, necessariamente, estar autenticadas. E, a segunda, de saber qual deve ser a postura do julgador do agravo, quando faltar ao instrumento cópia de uma dessas peças, ou de uma ou alguma página das mesmas.
3.1. A autenticação das cópias juntadas à petição de agravo
Há julgados que exigem a autenticação de todas cópias componentes do agravo, as quais são consideradas como “inexistentes” quando não atendida essa formalidade. Isso mesmo quando nem a parte contrária, nem o julgador, põem em dúvida a autenticidade das cópias. É o que se afere dos seguintes acórdãos:
“...não se conhece do Agravo de Instrumento se as peças que o instruem não se encontram autenticadas, posto que meras xerocópias não têm a mesma força probante dos originais. A responsabilidade na formação do instrumento é do agravante, nos termos da lei. (...)”[11]
“(...) As peças trasladadas ao instrumento do agravo devem ser autenticadas como assentado em precedente da Corte. 2. Com a vigência da Lei nº 9139/95 já não mais se admite a conversão do processo em diligência para o cumprimento do disposto no art. 525, I, do Código de Processo Civil, ou para a regularização das peças apresentadas sem autenticação, na linha de precedentes da Corte. (...)”[12]
Esse entendimento, todavia, é equivocado. É desprovido de qualquer sentido ou propósito que, sem se questionar a veracidade das cópias integrantes do traslado do agravo de instrumento, exija-se a sua autenticação. Trata-se de claro exemplo de formalidade inapta a se chegar a qualquer fim, já que a autenticidade das cópias não é sequer posta em dúvida concretamente; desnecessária, porque a parte adversa pode aferir sua autenticidade mediante exame dos autos principais, aos quais tem livre acesso, e que podem, finalmente, ser enviados ao tribunal ad quem caso este entenda relevante; e desproporcional em sentido estrito, porque mutila os princípios do devido processo legal substantivo e da razoabilidade, bem como o direito à tutela recursal, para com isso assegurar tênue e duvidoso prestígio ao devido processo legal formal e à segurança jurídica. Aliás, a rigor, a exigência sequer encontra amparo em dispositivos da Lei Processual Civil.
Tanto é assim que a mesma está sendo afastada. No plano legislativo, permitiu-se que o próprio advogado declarasse a autenticidade de tais cópias, sob sua responsabilidade, no que toca ao agravo previsto no art. 544 do CPC, o que diminuiu bastante o ônus que essa exigência, quando necessária, pode trazer às partes[13]. Trata-se de dispositivo meramente explicitante, pois é óbvio que o advogado, ao subscrever a petição de agravo, está por ela – e pela autenticidade de tudo que a acompanha – assumindo inteira responsabilidade. Não se pode deixar de louvar o seu mérito, contudo, de afastar o equívoco consubstanciado nos acórdãos acima transcritos, deixando claro que essa declaração do advogado é suficiente.
Entretanto, é de se observar que existem agravos contra despachos denegatórios de recursos às Cortes Superiores – nos quais não se autenticaram as cópias, nem o advogado declarou expressamente a autenticidade das mesmas (embora isso esteja sempre evidentemente implícito) – que foram interpostos antes do advento da Lei n.º 10.352/2001 e ainda estão pendentes de julgamento. Ademais, não foram alterados os dispositivos que cuidam do agravo de instrumento interposto em face de decisões interlocutórias do juízo de primeiro grau. Nesses casos, deve ser prestigiado o entendimento jurisprudencial que tem procurado modificar o desacerto no qual incorreram os acórdãos antes referidos, e que afasta o formalismo em face de uma interpretação inteligente dos dispositivos da lei processual.
Essa evolução jurisprudencial evita não apenas a violação ao princípio do devido processo legal substantivo, mas também à isonomia, na medida em que os órgãos públicos já não se sujeitavam à exigência por força de dispositivo de Medida Provisória[14]. Hoje o entendimento prevalente no Superior Tribunal de Justiça é o seguinte:PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. AUTENTICAÇÃO DE DOCUMENTOS. DESNECESSIDADE. AGRAVO PROVIDO. SUBIDA DO RECURSO ESPECIAL.I - Desnecessária a autenticação de documentos cujos originais encontram-se presentes nos autos onde foi proferida a decisão;II - As peças trasladadas presumem-se verdadeiras se a parte contrária silencia quanto à autenticidade.III - Agravo Regimental provido a fim de que subam os autos do Recurso Especial para melhor exame.”[15]
“PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AUTENTICAÇÃO DE PEÇAS. DESNECESSIDADE. O artigo 525 do Código de Processo Civil, que dispõe sobre o modo como o agravo de instrumento deve ser instruído, não exige a autenticação das respectivas peças. Recurso especial não conhecido”[16].
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO DE DESPACHO DE JUIZ MONOCRÁTICO. FORMAÇÃO. PEÇAS NÃO AUTENTICADAS. RECURSO ESPECIAL. TEMA NÃO DEBATIDO. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA.
I. Não impugnada a autenticidade dos documentos que instruem o agravo de instrumento e em sendo sempre possível, na instância ordinária, o suprimento dessa exigência, é de ser a mesma afastada, consoante orientação recentemente firmada no REsp n. 248.341/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJU de 28.08.2000.
II. Recurso especial conhecido e provido”[17].
Julgando questão diversa, mas que cuida da mesma discussão de fundo, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça firmou o seguinte precedente, que inclusive vem sendo invocado por algumas de suas Turmas para conhecer de agravos de instrumentos instruídos com cópias não autenticadas, nos termos das decisões já transcritas acima:
“PROCESSUAL - PETIÇÃO INICIAL - FOTOCÓPIAS NÃO AUTENTICADAS - INDEFERIMENTO LIMINAR.
I - Não é lícito ao juiz estabelecer, para as petições iniciais, requisitos não previstos nos artigos 282 e 283 do CPC. Por isso, não lhe é permitido indeferir liminarmente o pedido, ao fundamento de que as cópias que o instruem carecem de autenticação.
II - O documento ofertado pelo autor presume-se verdadeiro, se o demandado, na resposta, silencia quanto à autenticidade (CPC, Art. 372)”[18].
No âmbito do Supremo Tribunal Federal o problema vem recebendo o mesmo lúcido tratamento. Julgando embargos de declaração no agravo regimental no agravo de instrumento, a Primeira Turma do STF examinou o inconformismo da Fazenda Nacional quanto a não estarem autenticadas peças componentes do traslado feito pela parte adversa. O acórdão porta a seguinte ementa:
“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. FORMAÇÃO DO INSTRUMENTO. AUTENTICAÇÃO DE PEÇAS. DESNECESSIDADE. CONTRADIÇÃO E OBSCURIDADE. INOCORRÊNCIA.
1. Na forma do § 1.º do artigo 544 do CPC, o instrumento que acompanha a petição do agravo é formado por cópias de peças extraídas dos autos principais, nada aduzindo a lei sobre a exigência de autenticação. Presunção de veracidade dos documentos comuns às partes, passível de ser afastada apenas mediante impugnação por vício de ordem material.
2. A disciplina do artigo 384 do CPC diz respeito às provas produzidas durante a instrução processual para embasar ou contraditar o direito material em litígio, sendo inaplicável à formação do agravo, cujos documentos têm clara função instrumental.
3. Não configuradas no acórdão recorrido as hipóteses previstas nos incisos do artigo 535 do Código de Processo Civil, restam inviabilizados os embargos declaratórios. Embargos de declaração rejeitados”[19].
E nem poderia mesmo ser diferente. Assim, é de se esperar que o entendimento consagrado nas decisões acima transcritas seja definitivamente acolhido por nossas Cortes Superiores, sendo adotado também pelas Turmas do Superior Tribunal de Justiça que ainda proferem acórdãos dele divergentes.
Seja como for, no que diz respeito aos agravos de instrumento a serem doravante interpostos, é recomendável que, por cautela, e em face do disposto no art. 544, § 1.º do CPC, com a redação dada pela Lei n.º 10.352/2001, o próprio advogado expressamente declare autenticas todas as peças constantes do instrumento, a fim de evitar eventuais questionamentos a respeito da questão. E, ao fazê-lo, é recomendável também que junte cópia não apenas das peças exigidas, mas, se possível, de todas as folhas dos autos, especialmente quando se tratar do agravo de instrumento referido no art. 544 do CPC, pois nesse último caso o Tribunal Superior poderá convertê-lo no respectivo recurso especial, ou extraordinário, e julgar desde logo o cerne da questão, com notável resultado para a economia e a celeridade processuais.
3.2. Ausência de peças obrigatórias ao traslado do agravo
Outro ponto assaz questionado, no que pertine à formação do traslado do agravo de instrumento, principalmente no que toca ao agravo previsto no art. 544 do CPC (interposto contra despacho do presidente do tribunal de apelação que nega seguimento ao recurso aos tribunais superiores), é o relativo à ausência de cópias de peças obrigatórias.
A exigência da cópia de algumas das peças dos autos principais, como dito acima, é válida, no plano hipotético, na medida em que tem por fim possibilitar que o juízo ad quem tenha conhecimento de todos os aspectos da controvérsia apesar de não estar com os autos respectivos. É por conta dessa finalidade que o CPC enumera tanto no art. 525, como no art. 544. § 1º as peças que, em regra, são essenciais para a compreensão da controvérsia. Interpretando essas normas a Súmula 288 do STF - elaborada quando sua competência abrangia a que hoje é do STJ - dispõe:
“Nega-se provimento a agravo para subida de recurso extraordinário, quando faltar no traslado o despacho agravado, a decisão recorrida, a petição de recurso extraordinário ou qualquer peça essencial à compreensão da controvérsia.” (grifou-se)
Essa exigência, contudo, tem sido desnaturada quando de sua aplicação concreta, pois é feita sem a preocupação de conciliar a finalidade buscada pela norma com as peculiaridades de cada caso concreto. Realmente, mesmo nos casos em que a presença do documento não é essencial para o exame da lide, ou sua ausência não pode ser imputada ao agravante, a cópia do seu inteiro teor é exigida como condição para o conhecimento do agravo. E não é permitida qualquer espécie de suprimento ou retificação posterior.
Com efeito, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm feito interpretação bastante rigorosa do § 1º do art. 544 do CPC. Não conhecem de agravos de instrumento nos quais, por equívoco, falta apenas uma folha de uma das citadas peças, ou, pior, nos quais não consta uma das citadas peças porque a mesma não existe nos próprios autos do processo principal, e a parte agravante não junta certidão dando conta dessa ausência.
Confira-se, a propósito, as seguintes ementas:“PROCESSO CIVIL – AGRAVO DE INSTRUMENTO – NÃO CONHECIMENTO – AG. REGIMENTAL – LOCAÇÃO COMERCIAL – TRASLADO OBRIGATÓRIO – AUSÊNCIA DE PEÇAS – ART. 544, § 1º, DO CPC – SÚMULA 223/STJ - FALTA DE AUTENTICAÇÃO - ARTS. 365, III E 384, AMBOS DO CPC.1 – As peças elencadas no art. 544, §. 1º, do Código de Processo Civil são de traslado obrigatório, sob pena de não conhecimento do Agravo de Instrumento. Assim, a cópia das contra-razões ao Recurso Especial, ou a certidão de sua não apresentação, tida como inserida neste rol, deve figurar na formação de tal recurso. Aplicação da Súmula 223/STJ (cf. AgRg AG nºs 253.935/SP e 246.014/DF). (...).[20]
“Se a peça de traslado obrigatório, como as contra-razões do recurso extraordinário ou a procuração outorgada ao advogado do agravado, não consta dos autos de que deveria ser extraída sua cópia, tem o agravante o dever de juntar aos autos do agravo certidão dessa ausência, sob pena de não conhecimento do agravo, como decorre da exigência do art. 544, §1.º, do CPC.”[21]
Por curioso, apesar de fazer interpretação literalista do artigo quando falta alguma das peças nele enumeradas, mesmo no caso em que a peça ou parte dela não existe, ou não é essencial para o exame da lide, a Jurisprudência faz interpretação ampliativa do §1.º do art. 544 do CPC, quando se trata de exigir outras peças além das enumeradas nessa norma. Para tanto, esses julgados invocam a finalidade da norma, tantas vezes ignorada. Em geral, tanto a consideração dessa finalidade, como seu desprezo, ocorrem quando destinados ao não conhecimento do recurso:
“É inadmissível agravo de instrumento tendente a viabilizar a subida de recurso especial, se não há prova nos autos da interposição de agravo de instrumento para o Colendo Supremo Tribunal Federal contra decisão que indeferiu o processamento do recurso extraordinário. O elenco de peças do art. 544, § 1.º, do CPC, é meramente exemplificativo, condizente com o entendimento de que outra peças - tal qual a certidão comprobatória de interposição de agravo para o STF - são absolutamente indispensáveis, porquanto rematada obscuridade jurídica constituiria a decisão provedora de agravo instrumentado, determinando a subida à instância derradeira de recurso especial, quando já vislumbrado o possível trânsito em julgado do fundamento constitucional suficiente.”[22]
Parece-nos, porém, que essa interpretação quanto às condições para o conhecimento do agravo deve ser repensada. Muitas vezes implica negar o direito do jurisdicionado à prestação da tutela recursal, mediante exigências excessivamente gravosas, desnecessárias e ainda desvinculadas do alcance e da finalidade da norma que as estabelece. E, pior, completamente irracional à luz de muitos casos concretos[23].
Quanto ao casos em que não existe, nos próprios autos da ação principal, a peça exigida na instrução do agravo, o não conhecimento desse recurso, porque a parte agravante não juntou certidão declarando essa ausência, deve ser decidido com muita cautela e cuidado com a “padronização” de julgados. Primeiro, porque essa ausência pode ser percebida, em alguns casos, mediante exame da própria seqüência da numeração das páginas dos autos principais. Segundo, porque pode haver, em alguma outra peça juntada ao agravo, referência a essa ausência, o que torna claramente desnecessária a exigência de certidão atestando o mesmo fato. Em casos assim, o Supremo Tribunal Federal tem considerado “superada a falta das contra-razões pela afirmação, pela decisão agravada, da inexistência das mesmas”[24].
Além disso, se a peça está ausente nos autos principais, por óbvio não é essencial para o exame da controvérsia, que seria feito normalmente sem a mesma, caso o Presidente do Tribunal a quo tivesse admitido o recurso especial ou extraordinário. Nada obsta, portanto, que o Tribunal adote a postura menos gravosa e igualmente útil de assegurar oportunidade para o agravante retificar o traslado e apresentar a certidão exigida, até porque, nesse caso, não se trata da inclusão de uma peça com conteúdo substancialmente novo nos autos do agravo, mas apenas de esclarecimento acerca da completude do traslado já devidamente formado.
A mesma razoabilidade deve orientar a postura do Tribunal quando a peça ausente do traslado é a certidão de intimação do agravante. Há casos, especial mas não exclusivamente no que tange ao agravo previsto no art. 524 do CPC, em que entre a data da assinatura do despacho agravado, e a data em que protocolizada a petição de agravo, transcorrem menos de 15 dias, mas, ainda assim, o agravo não é conhecido por falta da certidão de intimação, em face da qual seria “aferida” a sua tempestividade. Ora, se a tempestividade transparece evidente de outras peças do traslado, a exigência da certidão afigura-se estéril e inútil, inapta a se chegar a qualquer fim, e absolutamente desnecessária. Não encontra validade na ordem jurídica, além de implicar evidente e grave desprezo pela realidade posta em juízo. A situação é tão absurda quanto a de um aposentado que, tido como morto pelo INSS em face do falecimento de um homônimo seu, comparece à repartição respectiva munido de todos os seus documentos, mas não é considerado vivo até que apresente um “atestado de vida” firmado por médico do INSS.
Ainda no que pertine à certidão de intimação, mesmo quando essa tempestividade é certificada pelo Tribunal a quo, agravos interpostos com arrimo no art. 544 do CPC deixam freqüentemente de ser conhecidos por conta de estar ilegível o carimbo em face do qual poderia ser aferida a sua tempestividade, ou a tempestividade do recurso especial ou extraordinário, ou porque por qualquer outra razão não consta do traslado documento que ateste a data das respectivas intimações:
“Se o carimbo de protocolo do recebimento do recurso especial não permite a aferição da tempestividade na sua interposição, caberia à parte obter certidão sanando o vício ainda na instância ‘a quo’, antes da subida do recurso. Não o fazendo, então, torna-se impossível o conhecimento do agravo de instrumento”[25].
“A certidão da Secretaria do Tribunal ‘a quo’, declarando que o recurso extraordinário foi interposto dentro do prazo, não substitui, evidentemente, a certidão de publicação do acórdão recorrido, porquanto é por meio desta, e não daquela, que se pode verificar tempestividade ou intempestividade do recurso e, portanto, o acerto, ou não, da certidão da Secretaria”[26].
Nesses casos, não se considera suficiente que o Tribunal a quo afirme a tempestividade do recurso, por meio de seu Presidente, ou de seus servidores. Exige-se ainda que conste do instrumento também a certidão de intimação, a fim de que o Tribunal ad quem avalie a veracidade dessa afirmação, o que é completamente despropositado, data maxima venia. Primeiro, porque a indicação da tempestividade do recurso especial ou extraordinário, ou do agravo, em outras peças, atende à mesma finalidade da certidão de intimação, sendo claramente desproporcional não conhecer do agravo porque tal informação não consta de certidão ou de carimbo específico, este último de ilegibilidade nem sempre imputável ao agravante. Segundo, porque não é razoável presumir, ainda mais de ofício, a falsidade das declarações emanadas do Tribunal a quo.
3.3. Ausência de partes de peças obrigatórias ao traslado do agravo
No que diz respeito à ausência de parte de alguma peça essencial ao traslado, a questão não é de tão fácil deslinde, e demanda ainda maior atenção para cada caso concreto, o que os Tribunais, talvez pelo elevado volume de trabalho a que estão submetidos, não vêm fazendo. Em julgamentos padronizados, que malferem o próprio conceito de jurisdição, deixa-se de conhecer de todo e qualquer agravo ao qual falte uma folha sequer de um dos documentos mencionados no art. 525, I, ou, o que se dá com mais freqüência, no § 1.º do art. 544, ambos do CPC.
Suponha-se que a questão verse Direito Societário, e o despacho agravado, que negara seguimento a um recurso especial, afirme não haver sido prequestionado, sendo inteiramente alheio à controvérsia, determinado artigo da Lei n.º 6.404/76, cuja negativa de vigência é o fundamento do recurso obstaculizado. Parece claro, nesta hipótese, que só mediante cópia de todas as peças referidas no art. 544, § 1.º do CPC o cabimento do recurso especial poderá ser examinado. Se faltar ao instrumento precisamente a cópia da folha na qual o acórdão recorrido fazia referência aos dispositivos da lei federal tidos por violados, por exemplo, inegável será a impossibilidade de se conhecer do agravo.
Imagine-se, porém, que se trata de uma lide tributária, na qual um contribuinte, organizado sob a forma de sociedade por ações, discute a validade de lançamento do imposto de renda previsto no art. 35 da Lei 7.713/88, já proclamado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. O Tribunal de Apelação, no entanto, considera constitucional a citada exigência de imposto de renda, e nega seguimento ao Recurso Extraordinário do contribuinte por entender que a questão constitucional não está devidamente prequestionada, apesar de os dispositivos constitucionais pertinentes haverem sido discutidos à exaustão no acórdão, que afinal tratava da argüição de inconstitucionalidade de uma lei. Diante dessa situação, o contribuinte interpõe agravo de instrumento, e junta cópia não apenas de toda a documentação exigida pelo art. 544, § 1.º, do CPC, como de todas as demais folhas dos autos. Mas, por equívoco diante do volumoso número de documentos, folhas e autenticações, deixa de juntar cópia de uma folha de suas razões de recurso extraordinário, folha intermediária, na qual havia apenas citações de doutrina. Mediante simples leitura das razões de Recurso Extraordinário, pode-se concluir que a ausência da mesma não muda o conhecimento da lide. Citada folha é ainda juntada posteriormente, quando os autos do agravo já estão no Supremo Tribunal Federal, não com a finalidade de suprir a “falta”, mas apenas para demonstrar a sua irrelevância no deslinde da controvérsia. E, por cautela, para evitar embaraçar o seu evidente direito material por conta do formalismo, e ciente da irrelevância da solitária folha de seu recurso que não havia sido anteriormente juntada, a parte pede nessa ocasião que o seu recurso seja considerado como se não possuísse a citada folha quando de sua interposição.
Note-se que, nesse último exemplo, toda a controvérsia pode ser devidamente compreendida pelo Supremo Tribunal Federal. O despacho agravado pode ter o seu equívoco constatado pela leitura do próprio acórdão recorrido. As razões (embora sem uma de suas folhas) e as contra-razões de Recurso Extraordinário, do mesmo modo, possibilitam vislumbrar a questão posta no recurso, e o seu respectivo cabimento. Finalmente, a juntada posterior da folha ausente demonstrou a sua irrelevância, e, ainda que assim não fosse, teria suprido inteiramente a falta.
Não obstante tudo isso, em casos assim, o Pretório Excelso tem decidido que “para que se cumpra o disposto no art. 544, § 1.º, do CPC, faz-se necessária a juntada, ao traslado, do inteiro teor das razões de recurso extraordinário, sob pena de não conhecimento do agravo de instrumento”. Tudo isso mesmo quando a omissão é de uma insignificante folha, e “ainda que a matéria já se encontre pacificada nesta Corte”[27]. Isso porque, em regra, os Tribunais não examinam a relevância da folha ausente, nem se a falta causa qualquer prejuízo à compreensão da controvérsia. Interpretam literalmente a expressão “inteiro teor” constante do art. 544, § 1.º, do CPC, sem cogitar se a formalidade é realmente útil, necessária e proporcional.
Esse formalismo inútil vem sendo corrigido pela moderna processualística, que superou a chamada linha “técnico-científica” do Direito Processual, instaurando “onda renovatória que se preocupa com os aspectos sociais e políticos do processo”[28]. Alguns julgados, contudo, não acompanham esse entendimento e adotam posturas merecedoras da secular e autorizada crítica de Hegel:
“Com a sua divisão em atos sempre mais particulares e nos direitos correspondentes, segundo uma complicação que não tem limite em si mesma, o processo, que começara por ser um meio, passa a distinguir-se da sua finalidade como algo de extrínseco”[29].
Em verdade, fazer exigências do gênero, a pretexto de preservar o princípio do devido processo legal em seu aspecto formal (finalidade para a qual já se viu que não é necessária), mutila-o, como dito, em seu sentido substancial, além de malferir os dispositivos que tratam do cabimento do recurso ao Supremo Tribunal Federal. Isso sem considerar que deixa incólume uma violação reconhecida à Constituição Federal, mantendo pessoas com o mesmo direito material em situação de desigualdade. Tudo em prol de interpretação de duvidosa procedência de um dispositivo contido em uma regra legal. Enfim, medida claramente desproporcional em sentido estrito, inteiramente divorciada da realidade posta à apreciação do Judiciário.
É de se ressaltar, porém, que a questão é outra caso, à luz de determinada lide, o Tribunal conclua pela indispensabilidade da cópia ausente no traslado – porque a falta realmente impossibilita o conhecimento completo da controvérsia – e ainda conclua pela impossibilidade de suprimento posterior dessa falta, fundamentando tais pontos à luz do caso concreto ao deixar de conhecer o agravo de instrumento. Diante de julgados desse teor, nada se lhes pode opor, porque a falta de parte da cópia malfere a norma em sua finalidade. Inaceitável, porém, é que a exigência seja feita de modo irracional e automático, por meio de decisões de igual conteúdo para os casos em que a formalidade realmente é indispensável, e para os casos em que é completamente desnecessária e inútil.
Os danos causados por esse tipo de compreensão não são poucos, e não se resumem aos princípios constitucionais processuais diretamente implicados. Basta ver a quantidade de ações rescisórias interpostas por conta, exclusivamente, do não conhecimento intransigente de recursos dirigidos às Cortes Superiores, e as inúmeras perplexidades sobre as quais a doutrina processualística se está deparando quanto ao cabimento dessas ações[30]. O formalismo cria, em situações assim, profunda desigualdade e injustiça.
Conclusão
Do exame dos acórdãos acima transcritos, elencados de modo meramente exemplificativo, percebe-se que o formalismo está sendo empregado como tentativa de afastar a apreciação do grande volume de lides submetidas ao Poder Judiciário. Esse emprego das formas processuais, todavia, representa solução desaconselhável para o problema, entre outras razões, porque:
a) implica amesquinhamento da função jurisdicional, uma vez que aumenta os julgados que examinam questão meramente processual e ignoram o pronunciamento sobre o direito material das partes.
b) enseja uma eliminação irracional de processos, o que faz com que demandas de alta relevância sejam “não conhecidas”, enquanto outras, protelatórias ou irrelevantes, sejam cuidadosamente deslindadas; e, ainda,
c) não implica uma diminuição no volume de processos submetidos à apreciação do Judiciário, mas sim um acréscimo, pois infindáveis recursos são manejados na tentativa de reverter a irracional exigência da forma, culminando, muitas vezes, na ulterior interposição de ação rescisória, quando tudo poderia ser resolvido de modo célere e eficaz mediante uma interpretação racional das normas processuais.
Por tudo isso, é assaz relevante o emprego, também no âmbito do Direito Processual, das modernas técnicas de hermenêutica, que, diante da reconhecida insuficiência de uma lógica dedutiva de subsunção da norma literalmente considerada ao fato nela previsto, preconiza a devida atenção às peculiaridades de cada caso concreto, prestigiando-se o sistema jurídico como um todo, especialmente os princípios constitucionais, que devem ser racionalmente conciliados.
NOTAS:
[1] A constitucionalização do princípio da efetividade da tutela jurisdicional tem efeitos muito mais abrangentes que a mera garantia formal de um pronunciamento do Judiciário (com qualquer conteúdo). Esse pronunciamento, entende-se atualmente, há de restabelecer o direito subjetivo eventualmente violado com a máxima coincidência possível à situação existente caso tivesse havido o seu adimplemento pontual e voluntário. Confira-se, a propósito, Luigi Paolo Comoglio, Corrado Ferri e Michele Taruffo, Lezioni sul Processo Civile, 2.ª ed., Bologna: Il Mulino, 1998, pp. 56 e 57.
[2] Giuseppe Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, tradução de Paolo Capitanio, Campinas: Bookseller, 1998, v. III, n.º 285, p. 6.
[3] José de Albuquerque Rocha, Teoria Geral do Processo, 3 ed, Malheiros, São Paulo, 1996, p. 262.
[4] No original: “In effetti quando si dice, come accade comunemente, che il processo serve all’attuazione o alla tutela dei diritti, si compie un’affermazione forse non falsa ma astratta e quanto mai generica. Il see il come il processo svolga in concreto questa funzione sono determinati dalla qualità e dall’efficacia dei rimedi processuali previsti dall’ordinamento in un dato momento storico. Se questi strumenti sono pochi, difficilmente accessibili e non adeguati alla natura delle situazioni sostanziali bisognose di tutela, la conseguenza è che la funzione di attuazione e garanzia dei diritti non può essere svolta in modo completo ed efficace. Se invece l’ordinamento processuale conosce rimedi diversificati, accessibili e tali da poter essere efficacemente impiegati nelle varie situazioni reali, allora si può dire che esse assicura la tutela giurisdizionale dei diritti” (Luigi Paolo Comoglio, Corrado Ferri e Michele Taruffo, Lezioni sul Processo Civile, 2.ª ed., Bologna: Il Mulino, 1998, pp. 29 e 30).
[5] José de Albuquerque Rocha, Teoria Geral do Processo, 3 ed, Malheiros, São Paulo, 1996, p. 262.
[6] G. W. F. Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, tradução de Orlando Vitorino, São Paulo: Martins Fontes, 1997, § 223, p. 197.
[7] Proporcionalidade e razoabilidade são princípios muitas vezes tidos por sinônimos, especialmente pela jurisprudência. Parece-nos, contudo, que tais princípios, embora tenham ambos por finalidade um controle do excesso na relação entre meios e fins, o que lhes confere conteúdo comum bastante grande, diferenciam-se na maneira como realizam esse controle. A proporcionalidade, de origem germânica, apela ao sopesamento dos princípios envolvidos, enquanto a razoabilidade, de procedência anglo-americana, invoca o senso comum, a legitimidade e a aprovação pela comunidade. Concebemo-los como dois instrumentos distintos, que não se excluem, mas se somam, no cada vez mais substancial controle da constitucionalidade dos atos do Poder Público.
[8] Como adverte Karl Larenz, “hay que encontrar una composición del conflicto que permita la subsistencia de cada uno de los derechos con el máximo contenido posible. Esto significa que ningún derecho tiene que retroceder más de lo que sea necesario para no recortar el del otro de un modo que sea no exigible.” (Derecho Justo – Fundamentos de Etica Juridica, tradução de Luis Díez-Picazo, Madrid: Civitas, 2001, p. 63).
[9] Hugo de Brito Machado Segundo e Raquel Cavalcanti Ramos Machado. “As Contribuições no Sistema Tributário Brasileiro”, artigo publicado no livro As Contribuições no Sistema Tributário Brasileiro, coord. Hugo de Brito Machado, São Paulo/Fortaleza: Dialética/ICET, 2003, p. 271.
[10] Cfr. Humberto Theodoro Júnior, Curso de Direito Processual Civil, 26.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999, v. 1, p. 575.
* Redação anterior à alteração veiculada pela Lei n.º 10.352/2001. A nova redação consta da nota de rodapé n.º 13, abaixo.
[11] Ac un da 5.ª T do STJ - AGA 383013/RJ – Rel. Min. Jorge Scartezzini – DJ de 11/11/2002, p. 253.
[12] Ac un da 3.ª T do STJ - RESP 130421/PR – Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito – DJ de 13/10/1998 p. 86.
[13] A nova redação do § 1.º do art. 544 do CPC, dada pela Lei n.º 10.352/2001, é a seguinte: “§ 1o O agravo de instrumento será instruído com as peças apresentadas pelas partes, devendo constar obrigatoriamente, sob pena de não conhecimento, cópias do acórdão recorrido, da certidão da respectiva intimação, da petição de interposição do recurso denegado, das contra-razões, da decisão agravada, da certidão da respectiva intimação e das procurações outorgadas aos advogados do agravante e do agravado. As cópias das peças do processo poderão ser declaradas autênticas pelo próprio advogado, sob sua responsabilidade pessoal.” (grifou-se).
[14] “PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO DAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. AUTENTICAÇÃO DAS PEÇAS. PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO. EXIGÊNCIA DESCABIDA. MP 1.699-40, DE 28/09/98.1 - A regra geral, sufragada, inclusive, pelo STF, é no sentido de se exigir a autenticação das peças que compõem o instrumento do agravo das instâncias ordinárias. Entretanto, excetuam-se dessa premissa as pessoas jurídicas de direito público que, ante a incidência do art. 24, da MP 1.699-40, de 28/09/98, estão isentas de autenticar as cópias reprográficas de quaisquer documentos que apresentem em juízo.2 - Recurso especial conhecido pela alínea "a", do permissivo constitucional.” (Ac un da 6.ª T do STJ – Rel. Min. Fernando Gonçalves – RESP 186.529/SP – DJ de 30/11/1998, p. 242).
[15] Ac un da 2.ª T do STJ -AGA 348353/RJ – Rel.Min. Laurita Vaz - DJ de 11/03/2002, p. 247.
[16] Ac un da 3.ª T do STJ - RESP 258379/AC – Rel. Min. Ari Pargendler - DJ de 22/10/2001, p. 318.
[17] Ac un da 4.ª T do STJ - RESP 273302/SP – Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior - DJ de 08/10/2001, p. 219.
[18] Ac un da CE do STJ - ERESP 179147/SP – Rel. Min. Humberto Gomes de Barros – DJ de 30/10/2000, p. 118 - JBCC 185/630 - JSTJ 21/69 - RSTJ 141/17.
[19] Ac un da 2.ª T do STF – AI 318.343-RJ – Edcl – AgRg – Rel. Min. Maurício Corrêa - DJ de 21/06/2002.
[20] Ac un. da 5ª T do STJ – AGA 383013-RJ – Rel. Min. Jorge Scartezzini – DJ de 11/11/2002, p. 253.
[21] Ac un. da 1.ª T do STF - AI 189.685-2-SP - Rel. Min. Moreira Alves – DJ de 8/8/97, p. 35.645
[22] Ac. un. da 1.ª T do STJ - AI n.º 174.323-RS-AgRg - Rel. Min. Demócrito Reinaldo – DJ de 18/05/98, p. 58
[23] O Superior Tribunal de Justiça chegou a decidir que “a admissão do recurso especial da outra parte não tem a virtude de dispensar o cumprimento da norma cogente do art. 544, § 1.º do CPC, a respeito das peças que devem obrigatoriamente constar do agravo de instrumento” (Ac un da 3.ª T do STJ - AI 88.263-RS - AgRg - Rel. Min. Costa Leite, DJ de 05/08/1996, p. 26.535). Nesse caso, data maxima venia, como os autos principais já seriam remetidos mesmo ao STJ por conta da admissão do recurso da parte contrária, o rigorismo na formação do traslado é formalismo sem nenhuma razão de ser. Absolutamente desnecessário.
[24] Ac un da 1.ª T do STF - AI 201.456-7-Sp - AgRg - Rel. Min. Sepúlveda Pertence - DJ de 06/02/1998, p. 14, apud Theotônio Negrão, Código de Processo Civil e legislação processual em vigor, 32.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001, nota 16 ao art. 544, p. 626.
[25] Ac un da 2.ª T do STJ - AI 150.280-PB - AgRg - Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior - DJ de 22/03/1999, p. 165.
[26] Ac un da 1.ª T do STF - AI 227.234-RN - AgRg - Rel. Min. Moreira Alves - DJ de 05/03/1999, p. 12.
[27] Ac un da 1.ª T do STF – AI 284.527-CE – AgRg – Rel. Min. Ellen Gracie – DJ de 19/10/2001. Citação de trecho do voto da Ministra Relatora, fls. 146 dos autos, colhido na internet em www.stf.gov.br.
[28] Cfr. Ada Pellegrini Grinover, em apresentação do livro Estudos e Pareceres de Direito Processual Civil, de Alfredo Buzaid, São Paulo: RT, 2002, p. 7.
[29] G. W. F. Hegel. Princípios da Filosofia do Direito, tradução de Orlando Vitorino, São Paulo: Martins Fontes, 1997, § 223, p. 197.
[30] Confira-se, a propósito: Ada Pellegrini Grinover, “Ação rescisória e divergência de interpretação em matéria constitucional”, em RDDT 8/9; Edmar de Oliveira Andrade Filho, “Colisão de Princípios e Coisa Julgada em Matéria Tributária nos Casos de Alteração de Texto sem Mudança da Norma”, em Problemas de Processo Judicial Tributário - 5.º vol, coord. Valdir de Oliveira Rocha, São Paulo: Dialética, 2002, p. 83; Leonardo Greco, “Eficácia da Declaração Erga Omnes de Constitucionalidade ou Inconstitucionalidade em Relação à Coisa Julgada Anterior”, em Problemas de Processo Judicial Tributário - 5.º vol, coord. Valdir de Oliveira Rocha, São Paulo: Dialética, 2002, p. 193.
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