quinta-feira, 3 de julho de 2008

Não-cumulatividade e IPI

Quando fiz post tratando do próximo livro a ser editado pela Dialética e pelo ICET, a respeito da não-cumulatividade tributária, leitor fez comentário mostrando-se curioso a respeito da resposta às questões ligadas ao IPI.
O prazo concecido aos autores, para que enviem seus textos, já se esgotou, e os arquivos eletrônicos que comporão o livro já estão sendo editados. O livro deve ser lançado no início do próximo semestre (2008.2). De qualquer modo, adianto, aqui, para atender a curiosidade do referido leitor (que pode ser a mesma de outros), as respostas que dei no artigo que escrevi para a coletânea, relativamente a esse imposto federal:
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4.1. Na hipótese de o contribuinte do IPI adquirir produtos isentos, não-tributados ou tributados com alíquota zero, e vender produto tributado, é possível aproveitar o crédito relativo às entradas? Caso afirmativo, como será ele calculado?
A resposta a essa pergunta pode ser afirmativa ou negativa, a depender da circunstância de a isenção, a alíquota zero ou a não-tributação decorrerem de aspectos pontuais (v.g., isenção regional ou subjetiva), ou, ao revés, de se referirem, indistintamente, a determinado insumo, considerado de forma universal e indistinta.
Um exemplo pode deixar mais claro o propósito dessa distinção.
Recorramos a uma primeira situação hipotética, aqui batizada de “situação A”. Nela, uma fábrica, estabelecida em São Paulo, adquire insumo usado na fabricação de um determinado produto, submetido ao IPI. Esse insumo, quando importado, ou quando fornecido por contribuinte estabelecido em qualquer outra parte do território brasileiro, é tributado pela alíquota de 30%, gerando o crédito correspondente à sua aquisição. Entretanto, esse mesmo insumo, quando fornecido por contribuinte estabelecido na Zona Franca de Manaus, é isento do IPI.
Agora, vejamos uma segunda situação hipotética, aqui chamada “situação B”. Nela, um insumo é submetido à alíquota zero de forma indistinta, independentemente do contribuinte que o produz e do local onde é produzido. Pode, outrossim, ser usado na fabricação de produtos essenciais, ou de produtos supérfluos, submetidos às mais diversas alíquotas de IPI.
Na “situação A”, o crédito deve ser mantido, sob pena de anular-se a isenção, que se transformaria em mero diferimento de incidência. Empresas situadas na Zona Franca de Manaus, quando fornecessem componentes para indústrias situadas em outras partes do Território Nacional, não dariam a estas o direito ao crédito respectivo, o que equivaleria a transferir-lhes o ônus pelo pagamento do imposto. Comprar de empresas situadas na Zona Franca seria um péssimo negócio, pois terminar-se-ia pagando pelo imposto do qual elas são isentas. A menos que as empresas vendessem seus produtos por preço bem mais baixo, para compensar o IPI mais elevado que seria pago pelos seus compradores. Em qualquer caso, neutralizar-se-ia a isenção, seus efeitos e sua finalidade. Com base nisso, o STF decidiu pelo direito ao crédito, no julgamento do RE 212.484/RS[1]. Em seu voto, o Min. Jobim, depois de recordar os precedentes relativos ao ICM, anteriores à emenda passos porto (EC 23/83, que inseriu, ainda na Constituição de 1969, as restrições hoje contidas no art. 155, § 2.º, II, da CF/88), consignou que “a isenção, na Zona Franca de Manaus, tem como objetivo a implantação de fábricas que irão comercializar seus produtos fora da própria zona. Se não fora assim o incentivo seria inútil. Aquele que produz na Zona Franca não o faz para consumo próprio. Visa a enda em outros mercados”. A maioria dos Ministros que acompanhou o Min. Jobim, a propósito, fundou-se precisamente nos precedentes do STF, relativos ao ICM, na emenda “Passos Porto”, e na aplicação das restrições apenas ao hoje ICMS.
Na “situação B”, a questão já não é de resolução tão simples, principalmente em se tratando de aquisição de insumos, matéria prima ou material de embalagem não tributado em virtude da aplicação de “alíquota zero”. Nesse caso, qual seria a alíquota a ser utilizada para dar ao adquirente do direito ao crédito? Esse problema não surge quando se trata de isenção subjetiva ou regional. Para resolvê-lo, o Judiciário atuaria como “legislador positivo”, estabelecendo uma alíquota? Dir-se-á, em oposição, que a alíquota aplicável seria a mesma incidente nas saídas, mas essa solução só agrava o problema. Primeiro, porque o Judiciário continuaria agindo como legislador positivo. Segundo, porque haveria uma inversão completa do princípio da seletividade. Supondo, só para exemplificar (as alíquotas a seguir usadas no exemplo são imaginárias), que o álcool etílico da cana de açúcar seja beneficiado com alíquota zero, o fabricante de um remédio que utilize álcool como insumo para fabricar remédio tributado pela alíquota de 10% terá crédito de 10%, enquanto o fabricante de cachaça, tributada por alíquota de 70%, que adquirir o mesmíssimo álcool, terá crédito de 70%... E, para confirmar a distorção, se um insumo usado na fabricação da cachaça for tributado pela alíquota de 0,001%, gerará crédito de 0,001%, mas se sua alíquota for zero, o crédito por ele gerado salta para 70%...
Talvez o STF não tenha atentado para a distinção importante que existe entre as duas situações antes apontadas, pelo que, no julgamento do RE 350.446/PR[2], entendeu que, não havendo distinção essencial entre a isenção e a alíquota zero, o direito ao crédito, já reconhecido para as entradas isentas (RE 212.484/RS), deveria ser reconhecido, também, para as entradas submetidas à alíquota zero. Em longo voto, de 51 páginas, o Min. Jobim faz apanhado histórico da não-cumulatividade no ICM e no IPI, da origem e dos fundamentos do número zero, da doutrina e da jurisprudência a respeito da isenção, e ao final conclui que se “o contribuinte do IPI pode creditar o valor dos insumos adquiridos sob o regime de isenção, inexiste razão para deixar de reconhecer-lhe o mesmo direito na aquisição de insumos favorecidos pela alíquota zero, pois nada extrema, na prática, as referidas figuras desonerativas, notadamente quando se trata de aplicar o princípio da não-cumulatividade. A isenção e a alíquota zero em um dos elos da cadeia produtiva desapareceriam quando da operação subseqüente, se não admitido o crédito.”
Entretanto, como se sabe, julgando o RE 353.657/PR, o Plenário do Supremo Tribunal Federal modificou o citado posicionamento, ao proferir acórdão que porta a seguinte ementa:

“IPI - INSUMO - ALÍQUOTA ZERO - AUSÊNCIA DE DIREITO AO CREDITAMENTO. Conforme
disposto no inciso II do § 3º do artigo 153 da Constituição Federal, observa-se
o princípio da não-cumulatividade compensando-se o que for devido em cada
operação com o montante cobrado nas anteriores, ante o que não se pode cogitar
de direito a crédito quando o insumo entra na indústria considerada a alíquota
zero.
IPI - INSUMO - ALÍQUOTA ZERO - CREDITAMENTO - INEXISTÊNCIA DO DIREITO -
EFICÁCIA. Descabe, em face do texto constitucional regedor do Imposto sobre
Produtos Industrializados e do sistema jurisdicional brasileiro, a modulação de
efeitos do pronunciamento do Supremo, com isso sendo emprestada à Carta da
República a maior eficácia possível, consagrando-se o princípio da segurança
jurídica.”

O que se espera, agora, é que o STF atente para a diferença entre as situações “A” (que deram azo às suas primeiras decisões) e as situações “B” (às quais seu entendimento foi indevidamente estendido, e depois revisto), para que não se negue o direito ao crédito a todas elas, indistintamente.
4.2. Faz alguma diferença, para a resposta da questão anterior, tratar-se de insumo submetido a isenção regional? Não assegurar o direito ao crédito, nessa hipótese, neutralizaria completamente a isenção?
Sim, é essencial, para a resposta à questão anterior, saber se a isenção ou a concessão de alíquota zero decorrem de situação específica preenchida pelo contribuinte (v.g., benefício subjetivo ou regional), ou se se trata de benefício universal e objetivamente concedido ao insumo, conforme explicado na resposta à questão anterior.

4.3. Caso se dê resposta afirmativa à questão 4.1, mesmo para o caso de insumos submetidos em todo o território nacional à alíquota zero, não haverá violação ao princípio da seletividade de acordo com a essencialidade? Um mesmo insumo, usado na fabricação de bebidas ou na fabricação de remédios, dará direito a um elevado crédito no primeiro caso, e a um diminuto - ou inexistente - crédito no segundo caso?

Sim, com certeza, e é exatamente por isso que a resposta à questão 4.1. demanda a distinção das situações nas quais a desoneração é regional ou subjetiva, daquelas em que a não-tributação ocorre de maneira uniforme em todo o território nacional.
No caso de um produto ser submetido ao IPI pela alíquota zero, indistintamente, e ser usado como insumo na fabricação de um outro, tributado, a ausência do direito ao crédito decorre de uma série de fatores.
Primeiro, do fato de o IPI ser um tributo não-cumulativo (imposto sobre imposto), e não um tributo “sobre o valor agregado” (base sobre base), conforme explicado na resposta à pergunta 2.3, supra. Segundo, o fato de que a manutenção do crédito, no caso, implicaria violação ao princípio da seletividade de acordo com a essencialidade do produto, esvaziaria por completo as alíquotas fixadas para insumos e produtos intermediários (que, por coerência, deveriam sempre ser substituídas pelas incidentes sobre os produtos finais em cujo fabrico fossem empregadas), além de representar a atuação do Judiciário como legislador positivo. Imagine-se, por exemplo, um insumo submetido à alíquota zero, que pudesse ser usado tanto na fabricação de um remédio como na fabricação de um perfume. No primeiro caso, o crédito seria diminuto, senão inexistente, em face da tributação reduzida do produto final. E, no segundo caso, o crédito seria expressivo, diretamente proporcional à natureza supérflua do item fabricado.


4.4. Na hipótese inversa, de saída de produtos isentos, não-tributados ou tributados com alíquota zero, subsiste o direito ao aproveitamento dos créditos relativos às entradas tributadas? O art. 11 da Lei 9.779/99 veicula norma de direito material, constitutiva do crédito, ou meramente procedimental, relativa à forma de sua utilização, podendo ser aplicada em relação a créditos decorrentes de entradas anteriores à sua vigência?

Sim, o direito ao creditamento subsiste. Se o contribuinte industrial adquire matéria prima, material de embalagem ou produto intermediário submetido à tributação pelo IPI, empregando-os na fabricação de produto isento ou tributado com alíquota zero, tem direito de manter o crédito correspondente, em face do princípio constitucional da não-cumulatividade, e da ausência de regra restritiva análoga a que existe em relação ao ICMS (CF/88, art. 155, § 2.º, II).
O art. 11 da Lei 9.779/99 não foi editado para “fazer nascer” o direito a esse crédito, que, como dito, decorre da sistemática da não-cumulatividade. Sua finalidade, em verdade, é a de viabilizar a utilização desse crédito por parte do contribuinte que não realiza quaisquer outras saídas tributadas pelo imposto, permitindo sua compensação com qualquer tributo administrado pela Secretaria da Receita Federal, nos termos do art. 74 da Lei 9.430/96. Trata-se, aliás, de norma excepcional que rompe a lógica de utilização desses créditos, transformando o que seria meramente escritural (apenas um ingrediente a ser usado no cálculo do imposto devido) em verdadeiro crédito patrimonial (oponível à SRF e compensável com outros tributos).
Esse instrumento foi buscado para prestigiar, além do princípio da não-cumulatividade, também o da seletividade conforme a essencialidade do produto tributado. Com efeito, não fosse essa solução, o fabricante de produto essencial (e por isso mesmo não onerado) não teria como aproveitar o IPI que eventualmente houvesse incidido sobre insumos ou outros itens usados em sua fabricação, fazendo com que esse ônus terminasse por onerar o produto essencial. O pão, por exemplo, não obstante submetido a alíquota zero, em face de sua essencialidade, seria gravado, indiretamente, pelo IPI incidente sobre o material usado em sua embalagem, e, com isso, não seria “verdadeira” a indicação de que o IPI sobre ele incidente seria “zero”.
Seja como for, como o mencionado art. 11 da Lei 9.779/99 cuida de mero instrumento para utilização de créditos que são gerados independentemente dele, é evidente que pode ser aplicado em face de entradas anteriores a 1999, e a créditos que nessa data já estavam acumulados na escrita fiscal dos contribuintes.
Esse, aliás, foi o entendimento acolhido pelo Superior Tribunal de Justiça, ao afastar a pretensão da União – materializada na IN SRF 33/99 – de que o art. 11 da Lei 9.779/99 somente poderia ser aplicado em relação a entradas havidas a partir de janeiro de 1999, vale dizer, somente a partir do início da vigência da lei surgiriam créditos passíveis de compensação. Rejeitando essa pretensão, o Superior Tribunal de Justiça considerou, corretamente, que o direito ao crédito decorre diretamente da Constituição Federal, e que a lei apenas veiculou uma nova forma de aproveitá-lo, vale dizer, “a Lei nº. 9.779, por força do assento constitucional do princípio da não-cumulatividade, tem o caráter meramente elucidativo e explicitador.”[3]
Em face do art. 17 da Lei 11.033/2004[4] e do art. 16 da Lei 11.116/2005[5], o mesmo entendimento parece aplicável às contribuintes PIS e COFINS não-cumulativas.
Notas:

[1] Rel. Min. Ilmar Galvão, Rel. p. o acórdão Min. Nelson Jobim, j. em 5/3/1998, m.v., DJ de 27/11/1998, p. 22, RTJ 167-2/698.
[2] Pleno, Rel. Min. Nelson Jobim, j. em 18/12/2002, m.v., DJ de 6/6/2003, p. 32
[3] STJ, 2.ª T, RESP 435.783/AL, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 3/5/2004. No mesmo sentido: STJ, 1.ª T, RESP 514940/SC, DJ de 23/8/2004, p. 124; 1.ª T, RESP 639868/SC, DJ de 28/2/2005, p. 228; 1.ª T, RESP 654472/PR, DJ de 28/2/2005, p. 238; 1.ª T, AgRg no RESP 612034/PR, DJ de 30/8/2004, p. 221; 1.ª T, REsp 415.796/RS, DJ de 10/5/2004
[4] Art. 17. As vendas efetuadas com suspensão, isenção, alíquota 0 (zero) ou não incidência da Contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS não impedem a manutenção, pelo vendedor, dos créditos vinculados a essas operações.
[5] Art. 16. O saldo credor da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins apurado na forma do art. 3o das Leis nºs 10.637, de 30 de dezembro de 2002, e 10.833, de 29 de dezembro de 2003, e do art. 15 da Lei nº 10.865, de 30 de abril de 2004, acumulado ao final de cada trimestre do ano-calendário em virtude do disposto no art. 17 da Lei nº 11.033, de 21 de dezembro de 2004, poderá ser objeto de:
I - compensação com débitos próprios, vencidos ou vincendos, relativos a tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal, observada a legislação específica aplicável à matéria; ou
II - pedido de ressarcimento em dinheiro, observada a legislação específica aplicável à matéria.
Parágrafo único. Relativamente ao saldo credor acumulado a partir de 9 de agosto de 2004 até o último trimestre-calendário anterior ao de publicação desta Lei, a compensação ou pedido de ressarcimento poderá ser efetuado a partir da promulgação desta Lei."

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