Lembro, ainda nas aulas do Mestrado em Direito da UFC, das lições do Prof. Marcelo Lima Guerra, na disciplina de Teoria Geral do Direito. Discutíamos a estrutura da norma jurídica, notadamente as características diferenciadoras de regras e princípios.
Depois de assentada a distinção entre regras e princípios, em face de um dos vários critérios para definir estes últimos, o Prof. Marcelo explicou que um mesmo dispositivo da Constituição (norma e texto não se confundem, como se sabe) pode conter uma regra, ou um princípio, a depender do caso concreto.
Aliás, uma norma pode ser construída a partir da junção de vários dispositivos, e de um dispositivo é possível extrair várias normas. Trata-se de uma confirmação da idéia de que é o intérprete, à luz do caso concreto, que, a partir do texto, constrói a norma.
Confesso que, em princípio, relutei um pouco em pensar que um dispositivo constitucional que, na minha visão, "claramente" contém uma regra, fosse "transformado" em um princípio, em determinado caso concreto, para com isso ser "relativizado". Em minha concepção da época, regra era regra, e princípio era princípio, e ponto final. Em alguns casos, em que a redação do dispositivo fosse dúbia, tudo bem que dele se tirasse uma coisa ou outra. Mas e quando a redação fosse clara?
É verdade, eu sei, que, como nos lembra Perelman, em trecho que a essa altura eu já conhecia, a clareza de um texto decorre, no mais das vezes, da falta de imaginação do intérprete. Mas eu não pensava muito nisso.
Eis que em um final de semana, curtindo uns filmes em casa, convenço-me inteiramente da afirmação do Prof. Marcelo. O filme era "Eu, robô", com Will Smith, inspirado no livro de mesmo nome de Isaac Asimov.
Foi em uma das primeiras cenas do filme, na qual se procura explicar a razão de Will Smith ter raiva dos robôs: em um acidente de carro, ele e a esposa estão feridos dentro de um carro que afunda em um lago. Os dois morrerão. Um robô vê a cena (o filme se passa no futuro, no qual existem robôs inteligentes) e salva apenas Smith, deixando sua mulher morrer.
A explicação de por que o robô fez isso foi que me convenceu inteiramente de que a norma é construída pelo intérprete no caso concreto, e de que de um dispositivo que aparentemente consagra uma regra se pode extrair, eventualmente, em vez de uma regra, um princípio.
É que os robôs, segundo Asimov, devem obediência a três "leis", conhecidas como as três leis da robótica. Seu enunciado é mais ou menos assim:
1 - um robô não pode ferir um ser humano ou, através da inação, permitir que um ser humano seja ferido;
2 - um robô deve obedecer às ordens dadas por seres humanos, exceto se tais ordens entrarem em conflito com a Primeira Lei;
3 - um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou a Segunda Lei.
Em um primeiro exame, claramente, três "regras". Não comportam ponderação, aplicando-se na base do tudo ou nada.
Mas eis que, na cena do acidente, no início do citado filme, o robô verifica que não terá tempo de salvar o personagem vivido por Will Smith e a sua esposa. Apenas um poderá ser salvo. Não haverá tempo, nem condições físicas (o carro está afundando muito rápido), de salvar os dois. O robô calcula isso, e verifica que a mulher está gravemente ferida. Mesmo salva do afogamento, poderá morrer, mesmo assim, dos ferimentos. Já o homem não. Está apenas desacordado. Calculando isso, o robô opta por salvar o homem, e deixar a mulher morrer. Viola - e observa - a primeira lei, que deixa de ser um "tudo ou nada" e passa a ser um princípio, em face das circunstâncias.
Fiquei sem palavras. Realmente, o que parecia uma regra (Lei 1), e na maior parte das vezes é mesmo uma regra (ou permite a construção de uma regra), mostrou-se, naquele caso, em face de suas peculiaridades, um princípio, passível de ponderação. Salvar o homem foi a maneira de "realizar da melhor maneira possível" o valor subjacente à primeira lei...
Eu já havia lido o livro, e gostado muitíssimo. O filme é um tanto diferente. Não é igual ao livro, reproduzindo a mesma história. É apenas inspirado. Mas ambos valem a pena.
O livro, escrito em 1950 (antes da Theorie der Grundrecht, de Alexy, que é de 1986...), contém passagem que relata primorosamente como metas antagônicas podem entrar em conflito mas podem ser conciliadas:
"Vrasayana perde a sua fábrica e consegue um novo emprego onde ele não pode mais causar nenhum dano... ele não foi muito prejudicado, não ficou incapacitado de ganhar a vida, porque a Máquina não pode prejudicar um ser humano mais do que minimamente e apenas para salvar um número maior..." (p. 316)
...
Já faz algum tempo que penso nisso: proporcionalidade, ponderação, fórmula do peso, são apenas tentativas de teorizar o bom senso que orienta inconscientemente nossas escolhas, a cada passo. Basta ver a "ponderação" que um médico faz antes de receitar um remédio, sopesando se com ele se alcançará a cura (adequação), se não há outro mais barato, ou com menos contra-indicações (necessidade), e se os efeitos colaterais, se inevitáveis, não são piores que a própria doença (proporcionalidade em sentido estrito). É algo tão lógico que eles, os médicos, ficam impressionados que tanto se teorize a respeito nos cursos - logo onde! - de Direito.
2 comentários:
Hugo,
essa foi a versão mais simples que já vi para compreender a teoria dos princípios de Alexy, incrementada pelas idéias do Marcelo Guerra.
Depois vou ver se escrevo alguma coisa no meu blog sobre o dever de respeito, proteção e promoção que complementa as idéias apresentadas em seu texto.
A propósito, até agora não li em nenhum constitucionalista algo mais evoluído sobre o dever de respeito, proteção e promoção e, na minha ótica, essa idéia é capaz de mudar muitos paradigmas no direito constitucional, desde a superação da teoria do José Afonso da Silva até a questão da colisão de direitos. Depois explico melhor minhas idéias... (aliás, já tem alguma coisa escrita, de modo não muito profundo, no Curso de Direitos Fundamentais que já lhe enviei). A propósito, recebeu o arquivo?
George Marmelstein
Recebi sim o seu arquivo, George, e estou, agora, preso na leitura dele. É fantástico. Se não fosse o aviso sonoro de que tinha recebido um e-mail, dando conta de seu comentário aqui, só responderia amanhã, e talvez até chegasse atrasado à faculdade, onde terei de dar aula agora no horário AB da noite.
Acho que já respondi seu e-mail relatando minhas primeiras impressões de seu livro.
um abraço,
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