Tem se desenvolvido, em matéria tributária, o estudo dos desdobramentos - no âmbito tributário - do princípio da solidariedade social, segundo o qual todos teríamos o dever de colaborar para com os gastos públicos. Seria a aplicação do princípio da capacidade contributiva em seu aspecto positivo, vale dizer, não apenas de vedar a cobrança onde não há capacidade contributiva, mas de determinar a cobrança sempre e necessariamente onde houver capacidade contributiva.
A idéia, como sempre, é a de que os direitos dos contribuintes são de primeira dimensão, ligados a uma visão liberal do Estado já ultrapassada, e que devem ser "relativizados" em face de direitos sociais a serem promovidos pelo Estado com os recursos oriundos dos tributos (saúde, educação) etc.
É preciso, contudo, ter muito, mas muito cuidado com esse discurso.
Na minha dissertação de mestrado, que depois transformou-se no livro "Contribuições e Federalismo", editado pela Dialética, examinei essa questão. Muitas vezes, tal discurso presta-se apenas para "relativizar" o direito do contribuinte, sem contudo promover-se qualquer acréscimo aos direitos sociais. Em suma, só uma desculpa... As velhas razões de Estado, constantemente maquiadas, repaginadas, revisitadas e reinterpretadas, sob o nome de "interesse público", "supremacia do interesse público", e, agora, "solidariedade social".
Não que eu seja contra a solidariedade. Muito pelo contrário. A questão é usá-la como desculpa, o que é algo bem diferente.
Em sua dissertação de mestrado, que depois transformou-se no livro "Interesse público e direitos do contribuinte", Raquel escreveu:
"O discurso da solidariedade, como se vê, e a prática o demonstra, só é considerado em uma 'ponta' da relação entre o Estado e a sociedade, a da arrecadação, na qual é menos, muito menos pertinente. No outro lado, o da destinação dos recursos, onde efetivamente faria toda a diferença, a solidariedade é esquecida por inteiro, o que torna falaciosa, para dizer o menos, sua invocação para justificar a arrecadação deste ou daquele tributo.
Esse ponto, aliás, é da maior relevância, e talvez nele se possa identificar o momento em que o raciocínio desenvolvido por alguns autores se converte em uma falácia: as demais dimensões de direitos fundamentais, como o agora apontado 'princípio da solidariedade' representam limites adicionais ao Poder Público, de natureza precipuamente positiva. No campo da tributação, diz-se com eles o que fazer com o que é arrecadado, em vez de apenas dizer-se como arrecadar (ou, mais propriamente, como não arrecadar).
Ainda que o princípio da solidariedade, e a natureza Democrática e participativa do Estado pós-moderno imponham ao cidadão um maior dever de participação, isso não significa que tenham de ser violados, ou mesmo apenas “relativizados”, os seus direitos em face do Estado cobrador de tributos. Primeiro, porque o incondicional respeito aos direitos do contribuinte não impede, de forma alguma, a obtenção de uma arrecadação expressiva. Segundo, porque a participação reclamada pelo princípio da solidariedade, e pela natureza Democrática do Estado pós-moderno, não são realizadas apenas com o pagamento de tributos, mas de muitas outras formas, todas inerentes ao exercício da cidadania. E, terceiro, porque o Estado pós-moderno, mesmo Democrático, não deixou de ser de Direito: houve acréscimo, e não supressão."
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Sempre que cuido desse assunto, lembro da maneira simples com que o Prof. Alcides Jorge Costa, Titular aposentado de Direito Tributário da USP, tratou da questão: "De que adianta a Prefeitura invocar a solidariedade para cobrar IPTU progessivo, se gasta todo o valor arrecadado em obras nos Jardins? E, o que é pior: Quando questionada a respeito desse direcionamento dos gastos públicos, a então prefeita teria justificado: - Ora, sabem o quanto eles pagam de IPTU?!"
Simples, mas genial. Aliás, as frases geniais geralmente são simples.
Pois bem. Pensava eu sobre esses assuntos quando recebi, de meu amigo Rodrigo Uchôa, o seguinte texto do Prof. Marcos Cintra, publicado na Folha do dia 23 p.p., que parece confirmar essas idéias:
"MARCOS CINTRA
IR, gastos públicos e desigualdade
De nada adianta arrecadar tributos progressivamente e gastá-los regressivamente, pois uma ação anula a outra
O IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) divulgou o estudo "Justiça Tributária: Iniqüidades e Desafios", mostrando uma realidade inquestionável: no Brasil, a renda continua fortemente concentrada, e o sistema tributário é altamente regressivo. O trabalho afirma que uma das causas dos desequilíbrios distributivos é a concentração da arrecadação nos tributos indiretos.
A alternativa apresentada pelo presidente do Ipea, Marcio Pochmann, em evento no CDES, seria eliminar tributos indiretos, como a Cofins, e compensar a perda de arrecadação através do aumento do número de alíquotas do Imposto de Renda da pessoa física -de 3 para 12-, elevando sua progressividade.Contraditoriamente, o estudo mostra que o quadro tributário brasileiro vem se ajustando positivamente quanto a sua progressividade nos últimos anos. Entre 1995 e 2007, a carga tributária dos tributos indiretos passou de 12,7% do PIB para 14,4% (mais 1,7 ponto) e a dos tributos diretos saltou de 5,8% para 10,3% (mais 4,5 pontos). Nesse sentido, as radicais alterações sugeridas pelo Ipea perdem motivação.
Surpreende que uma instituição que deveria estar sintonizada com as tendências tributárias modernizantes se prenda a conceitos e a propostas ultrapassados. Instituições internacionais como o Institute for Policy Innovation, e acadêmicos renomados, como Larry Kotlikoff, da Universidade de Boston, vêm defendendo, por questões de custo e eficiência, a substituição da tributação sobre a renda e o patrimônio por tributos sobre o consumo.
No mundo globalizado, tributar a renda de forma excessivamente progressiva, como propõe o Ipea, é um equívoco. Essa é uma base com grande mobilidade, sobretudo num ambiente de grande mobilidade de capitais, como ocorre atualmente.
As práticas evasivas contra a elevada tributação pelo Imposto de Renda variam desde o profissional com alto rendimento que estabelece domicílio fiscal onde a tributação é menor até o contribuinte que opta pela sonegação ou pela informalidade.Ademais, o Ipea procura resolver o problema da desigualdade agindo pela ótica da arrecadação de tributos, quando o enfrentamento dessa anomalia seria mais eficiente se as ações ocorressem através do aumento da progressividade do gasto público.
Ao mostrar em seu estudo que os gastos com previdência social e com o pagamento de juros são elevados no Brasil, o Ipea deveria notar que nessas variáveis se encontram mecanismos de distribuição de renda. Os gastos previdenciários distribuem, ao passo que o serviço da dívida concentra renda. De que vale arrecadar progressivamente e gastar regressivamente? Uma ação anula a outra.
Vale notar que entre 2001 e 2007 os gastos com benefícios previdenciários se mantiveram em torno de 28% do total das despesas do Tesouro Nacional, enquanto os encargos com a dívida mobiliária saltaram de 7,6% para 13%. Ou seja, nos últimos anos a carga tributária cresceu com ênfase nos tributos diretos, como mostrou o Ipea, mas as despesas financeiras, absorvidas pelos rentistas, quase duplicaram. A idéia de tributar progressivamente a renda para combater as desigualdades, como propõe o Ipea, é ineficaz e ultrapassada. Reestruturar os gastos públicos poderia gerar resultados muito mais satisfatórios na correção da distribuição de renda no país.
MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE , 62, doutor pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas, foi deputado federal (1999-2003). É autor de "A verdade sobre o Imposto Único" (LCTE, 2003). Escreve às segundas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
Um comentário:
Excelente... um argumento interessante, com foco nos gastos.
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