quarta-feira, 1 de abril de 2009

Como? Você não tem um marco teórico?

É curioso como em situações de expectativa, quando esperamos por algo que está por acontecer, ficamos à cata do mais mínimo sinal, que possa servir de indício do que está por vir e assim nos diminuir a ansiedade.
Assim fiquei nos minutos antecedentes à qualificação de minha tese, havida quarta-feira da semana passada.
Quando o professor Gustavo disse que pensava ser eu mais velho, achei um bom sinal. Vai ver que achou o texto maduro, fruto de mais experiência e tal. Aquela interpretação dos indícios que referi no início do post. Mas, quando ele disse que havia sido aluno do meu pai no mestrado da UFPE, na época em que ele (o meu pai) estava no TRF da 5.ª Região e dava aulas em Recife, fiquei apreensivo. E se ele tivesse em mente algo como minha professora da alfabetização? Aquela seria uma oportunidade para me fazer algo muito pior do que andar de joelhos sobre pedrinhas, com um rabo pendurado com fita crepe às calças.
No início da banca, que não começa com a defesa feita pelo candidato mas logo pela arguição feita pelos membros da banca, foi elogiado o uso do vernáculo. Um português claro, correto, bem empregado, até raro de se ver, disseram. Inocentemente, fiquei satisfeito, mas deveria ter antecipado que estavam "passando a vaselina", se é que me permitem a grosseira comparação - na informalidade do blog acho que isso é facultado.
Depois vieram as críticas. Muito bem vindas, como eu disse anteriormente.
Com muitas eu concordo. São pequenas falhas das quais eu mesmo tinha consciência. Além de apontá-las, os professores sugeriram como poderiam ser corrigidas, o que foi muito bom. Foram muito gentis, sugerindo alternativas, caminhos, autores, revelando não só conhecimento profundo da matéria como leitura dedicada do trabalho que estavam a examinar. O Prof. Martônio, na condição de orientador, já havia criticado o que considerara necessário em encontros anteriores, e nesse não disse nada, senão ao final, para manifestar sua discordância com algumas das críticas dos outros dois membros da banca.
Mas, como dizia, em relação a algumas críticas, não acho que tenham procedência, seja porque não procedem, mesmo em tese, seja porque não se aplicam ao trabalho que fiz, sendo em verdade fruto de uma compreensão equivocada do que tentei dizer nele. De qualquer modo, mesmo nesse caso me mostram a necessidade de torná-lo mais claro em tais pontos.
Vi que pequei, para a banca, mais pelo que fiz do que pelo que não fiz. Se não tivesse afirmado algumas coisas nem citado alguns autores, quase não teria ouvido críticas. Menos mal, porque, se quiser me submeter a tudo o que disseram, terei apenas que deletar alguns pontos.
Bom, mas o aspecto que foi motivo das mais pesadas críticas, de longe o mais grave, tido quase mesmo como uma heresia, e que separei para destaque neste post, foi o seguinte parágrafo, que inseri ao final da introdução:

"Fez-se esse exame tendo em mente três premissas de ordem metodológica. A primeira foi a de não ter o propósito de fazer crítica agressiva, predestinada a encontrar defeitos, mas tampouco o aplauso irrefletido, comprometido a só destacar virtudes. A idéia é, como preconiza Boaventura de Sousa Santos, “afirmar sem ser cúmplice, criticar sem desertar.”1
A segunda foi a despreocupação em identificar ou alinhar as conclusões deste trabalho às idéias que compõem a linha de pensamento deste ou daquele autor. Não se teve aqui, pelo menos conscientemente, o propósito de adequar ou conformar o que se dizia aos moldes de escola ou corrente filosófica específica, o que, porém, não foi impedimento para que se utilizassem, quando pertinentes e não contraditórias, idéias de várias delas. Afinal, a realidade à qual se reportam – e à qual se reporta esta tese – deve ser a mesma. Por isso, entenda-se: o fato de se fazer alusão ao pensamento de diversos autores relativamente a aspectos da questão aqui versada, aderindo-se a eles nestes aspectos, não significa que se esteja a endossar todas as demais idéias das pessoas citadas, que, às vezes, vistas no seu todo, são até antagônicas."

1 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice – o social e o político na pós-modernidade. 2.ed. São Paulo: Cortez, 1996, p. 105.

***

Foi esse parágrafo final, no qual eu disse não alimentar, na tese, a preocupação de me filiar a esta ou àquela corrente, a este ou àquele pensamento ou autor, que motivou as maiores críticas. Como - foi o questionamento - eu pretendo tratar de tema tão difícil (o fundamento da ordem jurídica), e ainda por cima tenho a pretensão de fazê-lo sem me filiar a NENHUM autor que me antecedeu nessa empreitada? Loucura!!! Eu teria que construir todo um sistema filosófico autônomo e independente, algo que poucos filósofos conseguiram, e ainda assim apenas no final de toda uma vida dedicada ao problema!

Eu já sabia que isso ia ocorrer. Estava, neste ponto (e em outros também), contrariando alguns "dogmas" da comunidade científica, e sobretudo jurídica. Mas foi proposital. Farei pequeno esclarecimento na versão definitiva da tese, com conteúdo semelhante ao que se segue, mas não modificarei a idéia. Espero não ser reprovado por isso.

A questão é a seguinte: eu não pretendo - e nem disse isso - enfrentar o problema sem partir das idéias de ninguém. Para usar linguagem ao gosto da academia, leitura rápida da tese revela que, em sua espinha dorsal, ela segue o pensamento habermasiano. Apenas agreguei a ele considerações ligadas à natureza humana, hauridas basicamente de Ernst Cassirer, e à natureza institucional do direito, de Searle, e à epistemologia falsificacionista de Karl Popper. No que pertine à crítica ao positivismo, segui basicamente Arnaldo Vasconcelos. E, no que toca às idéias de liberdade e igualdade, adotei um liberalismo igualitário inspirado em Dworkin, Rawls, Amartya Sen e Álvaro de Vita.

Enfim, o marco teórico existe. Está lá. Eu não teria como escrever sobre o tema - aliás, sobre coisa nenhuma - sem partir de conhecimentos, idéias e livros pré-existentes. E isso está claro na tese.

O que eu não quis foi fazer uma "tese de discípulo", na qual o autor diz "Para Fulano, o direito é...", "Segundo Fulano, a norma é ....". "Crítico tal diz que para Fulano o ordenamento é ...., mas na verdade Fulano nunca disse isso....", girando em torno das idéias do tal Fulano e do que se disse delas.

Ou seja, minha tese não se presta a discutir as idéias dos outros. Ela se propõe a discutir a realidade. É claro que, ao fazê-lo, serve-se das idéias dos outros, e dá os créditos (até demais, o excesso de notas de rodapé foi outra crítica. Disseram que citei algumas obras "irrelevantes").

Fico imaginando como seria engraçado, para não dizer ridículo, se na tese de um médico ele se propusesse a escrever sobre "A repercussão do paracetamol na digestão do leite materno segundo Feldman", e não examinasse nenhum bebê, e nenhum problema que algum deles tivesse sofrido pelo uso do paracetamol, mas ficasse apenas descrevendo o que o tal Feldman escreveu sobre o assunto, e criticando os críticos do Feldman porque esses não teriam entendido corretamente suas palavras e sua teoria. Não seria mais produtivo se o médico voltasse os olhos para a realidade, tentando resolver o problema nela identificado, ainda que usando, em maior ou menor escala, os ensinamentos do mestre Feldman? (O nome, esclareço, acabei de inventar. O paracetamol é o nome "genérico" do anti-térmico tylenol, e eu nem sei se existe ligação entre seu uso e a digestão do leite pelos bebês)

Ou então, outro exemplo: "a reprodução das bactéricas anaeróbicas segundo Boldman". E então o doutorando não examina nenhuma bactéria ao microscópio: ele apenas estuda o que Boldman disse sobre ela. Se Boldman disse que elas se reproduzem de uma forma, então pronto. Quem vai ter a petulância para olhar ao microscópio para ver se não é diferente?

Assim, por que teria eu de fazer, em um doutorado em Direito, uma tese sobre "Isso ou aquilo para Dworkin", ou "Isso ou aquilo segundo Amartya Sen"? Por que teria de "me filiar" a uma corrente para, depois de resenhar longamente o pensamento de seu maior expoente, pedir licença e, submissamente, discordar um pouquinho, ao final, de um aspecto circunstancial e acessório, só para justificar o "ineditismo" exigido no doutorado?

Na verdade, até considerando a exigência do ineditismo que fazem aos doutorandos (e que talvez tenha motivado a tal petulância de minha parte), acho que se só seguirmos os caminhos que os outros trilharam, só chegaremos aonde os outros já chegaram. Onde o ineditismo, então?

11 comentários:

George Marmelstein disse...

Hugo,

tem que ter rótulos, senão não presta. :-)

Como diria Raul Seixas:
“Tem que ser selado, registrado, carimbado, avaliado, rotulado se quiser voar(Se quiser voar)“.

Aliás, cito sua tese num segundo paper que estou escrevendo (depois te mando). Nela, eu faço uma "discordância de fachada", que acho que você vai achar injusta.

Após fazer uma sutil crítica "lógico-filosófica" ao pós-positivismo, coloquei a seguinte nota de rodapé:

"Uma crítica semelhante ao pós-positivismo pode ser lida em MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do Ordenamento Jurídico: liberdade, igualdade e democracia como conceitos interdependentes e necessários à aproximação de uma justiça possível. Fortaleza: Universidade de Fortaleza (tese de doutorado), 2009 (ainda não publicada). Na referida tese, o autor tenta resgatar a teoria do direito natural como fundamento do direito, por entender que o pós-positivismo não é capaz de corrigir todas as possíveis falhas e injustiças que o direito positivo pode acarretar. Embora concorde com essas críticas ao pós-positivismo, por também acreditar que devem existir critérios fora do direito positivo capazes de servir como base para uma avaliação axiológica do próprio direito positivo, não me parece que “ressuscitar” o direito natural seja a melhor solução teórica, haja vista a confusão conceitual que o termo sempre provocou. A substituição do direito natural pela ética, como se propõe aqui neste trabalho, talvez seja uma opção melhor, pois evitaria a eternização de debates meramente semânticos onde todos dizem a mesma coisa com palavras diferentes e não abrem mão de seus posicionamentos apenas para não “abandonar” o jusnaturalismo ou o juspositivismo, conforme o caso. Além disso, o estudo da ética tem avançado muito mais e, por isso, tem muito mais a oferecer de concreto do que a estagnada e etérea teoria do direito natural. De minha parte, se o jusnaturalismo se caracteriza pela crença de que existem valores fora do direito positivo, então não tenho nenhum problema em aceitar o jusnaturalismo. Por outro lado, se o juspositivismo se caracteriza por acreditar que não existe um direito natural ou divino ou etéreo ou metafísico, então aceito o rótulo de juspositivista sem constrangimento. Por sua vez, se o pós-positivismo é a concepção jurídica que aceita que os juízes argumentem com base em princípios (éticos), então não vejo problema em aderir ao pós-positivismo. Sou, portanto, um jusnaturalista que não acredita em direito natural ou então um juspositivista que não acredita apenas no direito positivo ou um pós-positivista que não acredita que todas as normas éticas estejam positivadas. Ponha o rótulo que quiser, desde que esteja disposto a ouvir o que tenho a dizer".

depois te mando o texto completo, que ainda não está terminado.


George

George Marmelstein disse...

Ah, e você achei que fiz uma análise correta do seu pensamento? Confesso que senti no seu texto uma quedinha pelo jusnaturalismo, embora você também não tenha assumido formalmente esse "rótulo".

George

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Gostei da citação do Raul Seixas!!
É verdade, George, uma quedinha pelo jusnaturalismo, mas não a ponto, eu acho, de adotá-lo.
Pelo que lembro de suas observações - muito úteis, por sinal - à tese, acho que você se impressionou com o capítulo no qual critico o positivismo. Parecia que, por criticá-lo, eu defendia a antítese, o jusnaturalismo, já que o foco do trabalho era fazer uma crítica ao pós-positivismo.
Mas não.
O jusnaturalismo também tem seus problemas, e tentei mostrá-los. Afastar uma norma, democraticamente feita, e compatível com as demais normas do sistema, apenas porque ela contraria o direito natural (quem disse?) pode gerar um grande problema. Até citei uma autora contrária ao divórcio, que atacava a lei recentemente aprovada no congresso por afirmá-la contrária ao direito natural...
Em verdade, admito que o DN existe, como fruto da capacidade humana de pensar coisas ideais, possíveis, mas que o grande problema é determiná-lo. Fiz até uma comparação com o governo de sábios de Platão, lembra?
Bom, mas gostei muito de sua nota.
Quando passar essa reta final da defesa da tese, mando para você uma versão mais atual do trabalho.
um abraço!

Bruno Weyne disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Bruno Weyne disse...

Prezado Hugo, tenho muito interesse em ler sua tese, como fará a respeito da disponibilização para consulta acadêmica? A unifor disponibiliza de algum modo a produção dos mestrado/doutorado?

A respeito do tema, lembrei do autor argentino Carlos Santiago Nino, tanto no livro "Ética y derechos humanos" quanto "Introducción al análisis del derecho" ele propõe uma tese interessante sobre o Direito e seus rótulos jusnaturalista e juspositivista, enfatizando um ponto em comum que existe entre eles, a saber: a inasfatabilidade dos juízos de valor. Você conhece o autor? Felicidades.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Prezado Bruno,
Conheço o autor, e até o refiro em alguns pontos da tese. Há interessante análise do pensamento dele no "notas sobre derecho y lenguage", de Genaro Carrió.
Quanto à disponibilização acadêmica, ainda não sei se a Unifor a fará.
Pretendo publicar a tese sob a forma de livro. Até já recebi o "ok" da editora Atlas, que examinou uma versão preliminar e gostou. Caso seja aprovada na banca, farei as alterações que se fizerem pertinentes, devendo a publicação ocorrer pouco tempo depois.
Felicidades

Feitosa Gonçalves disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Feitosa Gonçalves disse...

Em desfesa fos seus avaliadores rs!

Hugo, quer me parecer que se o referido parágrafo não estivesse lá a crítica não ocorreria (ou não seria tão contundente), não é? Considerando que tu já sabias que ela viria e uma vez que o que foi criticado foi o fato de que você "não se filiou a um marco teórico",e não o fato de que sua tese estaria "errada" ou "vazia"... Enfim, pelo que entendi do post, se esse foi o maior defeito que encontraram — a falta de uma "filiação oficial" a um marco, ou um parágrafo que pode ter soado pedante, eu mesmo não achei, mas... —, então acho que o que os avaliadoress da "pré-banca" (é assim que ela é denominada aqui no Pernambuco) lhe fizeram pode ser encarado até como um elogio indireto... Algo do tipo: "A tese está muito boa, mas esse parágrafo é desnecessário!"
De qualquer forma, acho que o "reverencialismo exacerbado", tão presente no Direito, é até prejudicial... Como posso seguir os passos de fulano e ir além de onde ele foi? Isso, de certa forma, pode fragilizar a tese; basta que se diga que fulano não teria ido onde eu cheguei; ou pior, que segundo sicrano, aquele não é o caminho...
Mas sei lá, eu confesso que não entendo bem essa coisa de ciência rs!

Abraço e sucesso!

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Feitosa,
Talvez se o parágrafo não estivesse ali a crítica não tivesse ocorrido. Não sei.
Talvez se eu tivesse feito um parágrafo dizendo em qual cartilha estaria a rezar, alguém tivesse dito que o autor dono da cartilha não concordaria com os pontos tais ou tais, ou que eu não tinha entendido a cartilha. Era isso o que eu queria evitar - ficar discutindo as cartilhas alheias - quando o foco deveria ser a realidade em função da qual as tais cartilhas todas foram escritas.
Talvez maiores críticas não tenham sido feitas precisamente porque não era ainda o momento. Foi apenas um "juízo de admissibilidade" do recurso. Se ele será provido ou não são outros quinhentos...

Graham's Blog disse...

Caro Hugo, parabéns pela altivez, não é sempre que se vê candidatos a doutorados expressarem em público e com tamanha independência suas opiniões. No mais, duas coisas. Não é ridículo um tese de medicina sobre "o que pensa fulano sobre a bactéria, ou a 'febre amarela no séc XIX", vc fala em produtividade de uma tese que tenha a realidade como objeto, mas ao mesmo tempo combate o positivismo, ora, quando vc combate a visão histórica da construção do objeto, mesmo que com cunho subjetivista, vc cai na armadilha do positivismo que prega a prevalência dos fatos. O conhecimento também se originada do modo pelo qual a realidade é interpretada, ou não haveria tão somente interpretações da realidade? Fica a reflexão.

Aproveito para convidar vc a visitar o site:

direitonatela.com.br

no qual juntamente com alunos da FADIVALE estamos trocando idéias sobre o Direito, Cinema e Literatura.

Continue com sua garra, que ela é exemplar. Felizes os alunos dos quais vc é Professor.

Cordialmente


Rosangelo Rodrigues de Miranda

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Rosangelo,
Muito pertinentes seus comentários.
Realmente, não seria absurda a tese do médico que se propusesse a falar sobre a bactéria na visão de fulano. Talvez eu tenha exagerado, para dar ênfase ao fato de que tampouco seria absurdo que alguém decidisse fazer a tese sem esse "corte epistemológico" tão radical.
O estudo da história (febre amarela no século tal), ou da forma como outros cientistas vêem a realidade, é importante até para que sejamos menos confiantes - ou um pouco mais céticos - quanto à infalibilidade de nossos próprios achados.
Obrigado por suas palavras. Visitarei seu blog.
um abraço