quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Relatividade de direitos fundamentais e inviolabilidade do domicílio

Saiu na Consultor Jurídico:

"Ordem pública justifica invasão domicilar na madrugada

por Priscyla Costa

Não há direito de caráter absoluto, mesmo os direitos fundamentais, quando o que está em jogo é outra garantia legal: a da ordem pública. Com este entendimento o ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, sustentou que a colocação de escutas telefônicas durante a madrugada no escritório do advogado Virgílio Medina não desrespeitou a inviolabilidade domiciliar prevista no artigo 5º, XI, da Constituição Federal.

Virgílio Medina é parte do Inquérito 2.424 instaurado contra ele, contra seu irmão, o ministro afastado do Superior Tribunal de Justiça Paulo Medina e mais três acusados de participar de um esquema de venda de sentenças judiciais para favorecer o jogo ilegal. Os ministros julgam nesta quinta-feira (20/11) se aceitam a denúncia contra os investigados.

Foram juntadas aos autos provas conseguidas por meio de escutas instaladas no escritório de Virgílio Medina. A Constituição Federal só permite a invasão domiciliar com ordem judicial durante o dia. A defesa do advogado argumentou que a invasão do escritório de Virgílio Medina correspondeu a uma invasão ilegal de domicílio. Por isso, as provas resultantes desse procedimento deveriam ser consideradas inválidas.

A preliminar foi rejeitada. Prevê o artigo 5º, XI, da CF: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. Peluso afirmou que essa inviolabilidade perde seu caráter absoluto quando o conceito de casa, ou domicílio, deixa de servir como moradia e trabalho, para atingir fins de ilegalidade.

Outra questão que foi levantada é a exceção à regra. Segundo Peluso, não havia outro meio de instalar as escutas telefônicas no escritório de Virgílio Medina que não fosse durante a madrugada. “Os aparelhos não poderiam ser colocados na frente de todas as pessoas. É preciso observar, nesse caso, o princípio da proporcionalidade e razoabilidade”, disse o relator.

O ministro Cezar Peluso ressaltou que o horário do procedimento policial não foi omitido nos autos do inquérito, pelo contrário consta em todos os relatórios “A intenção da autoridade policial foi garantir a eficácia da medida, daí se legitima sua legalidade”, considerou.

Votos vencidos

Ficaram vencidos, nesta preliminar, os ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Eros Grau, que consideraram transgredida a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar. Marco Aurélio foi quem abriu divergência. “O subjetivismo não pode agraciar esses autos. Vivemos em um Estado de Direito no qual as regras são expressas, O fato de alguém ser suspeito e investigado não permite flexibilizar qualquer garantia constitucional”, observou o ministro.

Marco Aurélio alertou para o fato de que a questão levantada no inquérito como vem sido enfrentada pelo STF, tem admitido permitir a presunção da culpa, quando o que a Constituição Federal preceitua é a presunção da inocência. Isso é feito quando é permitida a invasão do ambiente de trabalho, que para o ministro está comparado à residência e domicílio, durante a madrugada, quando a Constituição deixa claro que só pode ser feita durante o dia, mesmo com autorização judicial.

“Desvio de conduta não permite fechar a Constituição Federal, nem relativizar os direitos ali expressos e assegurados”, ressaltou Marco Aurélio. Segundo ele, não foi observada a proporcionalidade, porque há outros meios de investigação que não colocam em risco preceito da Constituição Federal. “Houve invasão ao escritório, como se não bastassem as interceptações. Não tenho como entender legítimo esse procedimento, nem o argumento de que era o único meio de se conseguir formular provas. Fico até atônito com o que este tribunal está se permitindo construir”, finalizou.

O ministro Celso de Mello acompanhou Marco Aurélio. Ele considerou que ficou clara a invasão de domicílio e disse que a proporcionalidade conta a favor do réu e não da pretensão punitiva do Estado. “O processo penal deve ser concebido como instrumento de salvaguarda do réu e não de perseguição do Estado”, disse.

De acordo com o decano da Corte, a cláusula constitucional da inviolabilidade atinge qualquer aposento e espaço privado conforme já decidido pelo Supremo Tribunal Federal. “Desrespeitado esse preceito, fica infringida a Constituição”, asseverou. Para Celso de Mello, o direito à intimidade e à privacidade limitam constitucionalmente os poderes do Estado, que deve observar essas garantias. “No processo penal, prática ilegal atinge resultado ilegal. A Constituição protege os bons homens e os maus homens”, destacou Celso de Mello.

Eros Grau tinha votado pela rejeição da preliminar, mas mudou sua posição depois de ouvir as considerações de Marco Aurélio e Celso de Mello. O ministro Gilmar Mendes declarou voto com a maioria, mas se mostrou inclinado à tese dos colegas vencidos. “Estamos diante de um belo caso”, ressaltou.

Revista Consultor Jurídico, 20 de novembro de 2008"

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O caso é muito delicado, e merece exame bastante cuidadoso.
Não sei - honestamente - se concordo com a conclusão do julgado. Talvez concorde, mas preciso pensar mais a respeito.
Escrevo logo este post, mesmo antes de "pensar mais a respeito" da conclusão, por discordar, totalmente, do fundamento.
Dizer que a garantia não se aplica ou "perde seu caráter absoluto quando o conceito de casa, ou domicílio, deixa de servir como moradia e trabalho, para atingir fins de ilegalidade" é perigosíssimo! Sempre o policial, quando invade a casa de alguém, o faz por considerar que ali existe, ou pode existir, alguém que pode estar usando o domicílio para a prática de ilegalidades. Aliás, se se admitisse, como chegou a se admitir nos EUA, que a homossexualidade é crime, um policial poderia invadir a casa de um cidadão no meio da noite, só para ver se ele não estaria por acaso usando seu domicílio para encobrir a prática de crimes.
O fundamento - insisto em dizer que ainda não sei se concordo com a conclusão, acho que sim - deveria ter sido outro!
Por exemplo: o escritório é considerado domicílio (e sou suspeito aqui para concordar com isso, pois o leading case em que isso foi firmado cita o meu "Processo Tributário" - clique aqui e vá até a página 33) porque nele, na parte não aberta ao público, as pessoas têm o direito de trabalhar sem serem molestadas em sua intimidade. Mas isso acontece em um escritório em horário de expediente, no qual a autoridade só pode entrar munida de ordem judicial, e não acontece em um escritório fechado de madrugada, onde não tem ninguém trabalhando. É o inverso, aqui, do que acontece na casa, onde a inviolabilidade é absoluta à noite para preservar o sujeito de ser arrancado de sua cama ainda de pijamas, da forma mais indigna possível, como não raro acontecia há não muito tempo. O motivo do caráter absoluto da inviolabilidade, no caso do escritório vazio na madrugada, não está presente.
Em suma: em um escritório à noite, vazio, não há intimidade a ser preservada. Pelo menos não uma que não pudesse ser devassada durante o dia. Daí a possibilidade de invasão.

Agora... Mudando de assunto, mas ainda no mesmo tema: dá para alimentar bastante as mentes dos que têm mania de conspiração e de perseguição. Ainda bem que não tenho nada a esconder, pois de vez em quando chego no escritório de manhã e acho que algumas coisas não estão exatamente no lugar em que eu as havia deixado... Se fosse esotérico (o que não sou em absoluto), diria que foram os duendes. Mas, agora, dá até para pensar que foi a PF!

6 comentários:

diogobacha disse...

Hahahaha Gostei da ultima parte de seu comentario!!!!A respeito do julgado, tenho que o STF andou mal, vale dizer, ou se estende o conceito de domicilio para abranger também escritorios profissionais e, como corolário, a inviolabilidade, exceto nos casos estritamente previstos, do escritorio durante o periodo noturno. Para mim, ou se alarga ou conceito ou se restringe o conceito de domicilio. Abrangindo, deve-se tambem alargar o espectro de proteção. O STF esta sendo incoerente.
Abraços HUGO

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Pois é, Diogo. Mas, considerando que em casa as pessoas ficam em momento de maior intimidade à noite, não teria sido esse o motivo de a regra da inviolabilidade do domicílio ser absoluta nesse caso? E em se tratando de escritório, não se dá o inverso?
O caso é realmente "sui generis". O problema, em minha ótica, foi a fundamentação usada, que autoriza o afastamento de TODA garantia constitucional processual. Afinal, a pessoa que a invoca (coisa julgada, devido processo, ampla defesa etc.) não pode fazê-lo para "encobrir seus crimes"...
Isso me lembra o período da Santa Inquisição, em que o direito de defesa era visto como heresia. Afinal, se o acusado fosse inocente, a autoridade com certeza descobriria isso sozinha. Se fosse culpado, o direito de defesa seria uma tentativa de enganar a autoridade...

diogobacha disse...

Realmente Hugo. Agora, uma pessoa pode muito bem estar em seu escritorio durante a madrugada, desde que esta se sinta à vontade para trabalhar durante este período, eis o problema, a liberdade que cada um tem para estar em qualquer lugar de acordo com sua vontade.Porém, concordo que a absolutização da inviolabilidade do domicilio é fixada visando conceder maior proteção nos momentos de maior intimidade da pessoa, mas creio que isso não justifica a devassa em escritórios, abrangida pelo conceito de domicilio.
Agora, cá entre nós, essa historia de relatividade dos direitos fundamentais pode ser usada de pretexto para o cometimento das maiores atrocidades imaginaveis, ainda mais quando se vincula o principio da proporcionalidade com o interesse público, mistura essa perigosa para a democracia!!!! Essa dicotomia interesse público x interesse privado não pode subsistir quando se trata do poder punitivo do estado, devendo, ao revés, ceder ambos a dignidade da pessoa humana.

Bom final de semana

Vitor disse...

Os duendes são coisa do passado, Hugo. Na verdade, hoje em dia seria mais provável que fossem os ETs - como diria Carl Sagan. haha Abraços!

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Pois é, Vitor, mas mesmo assim tem um monte de gente que, por incrível que pareça, ainda acredita.
Quanto aos ETs, Sagan, como você deve saber, não cuida do assunto de forma 'esotérica', mas científica, e não acredita que jamais tenham vindo aqui. Ele acreditava que seres vivos poderiam existir em outros planetas, o que é diferente.

George Marmelstein disse...

Hugo,

embora citando um exemplo substancialmenet diferente, defendi no meu Curso algo parecido com a conclusão do STF:

"não se pode excluir, de plano, a possibilidade de, em casos excepcionais, devidamente justificados, ser autorizado judicialmente o cumprimento de um mandado de busca e apreensão fora desse período, naquelas hipóteses em que a prova a ser colhida somente estará disponível durante a noite. Vale ilustrar com um exemplo: imagine que existe suspeita de que uma determinada casa noturna, aberta apenas para convidados, está explorando sexualmente pessoas menores idade. A suspeita não é forte o suficiente para configurar o flagrante-delito, hipótese em que seria desnecessária a autorização judicial. A boate em questão não é aberta ao público, já que apenas convidados podem entrar. Em situações assim, há inegável necessidade de ordem judicial para confirmar ou não a suspeita, mas a diligência será completamente inútil se for cumprida durante o dia. Por isso, certamente, o juiz, desde que o faça fundamentadamente, pode autorizar o cumprimento do mandado mesmo à noite para que a medida alcance algum resultado prático. Não fosse assim, estaria aberta uma imunidade quase intransponível para a prática ou ocultação de crimes no interior de residências. Essa idéia será compreendida com mais facilidade quando se analisar o princípio da proibição de abuso de direito fundamental (Parte Quatro)".


George Marmelstein