O site do STJ divulgou:
O Estado do Ceará conseguiu suspender, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), liminar concedida à Distribuidora de Alimentos e Raízes Ltda. que garantia a permanência de benefícios fiscais à empresa, mesmo com a existência de débitos referentes ao recolhimento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS. Segundo o presidente do STJ, ministro Cesar Asfor Rocha, a decisão que concedeu liminar à empresa de alimentos para que ela permanecesse imune às restrições fiscais impostas pela Fazenda do Estado do Ceará por causa dos débitos é “de grande potencial lesivo à ordem e à economia públicas”.
A liminar suspensa pelo presidente do STJ foi uma das três concedidas em primeiro grau pela Justiça. Duas foram revogadas pelo Tribunal de Justiça do Ceará (TJ-CE); por esse motivo, o ministro Cesar Rocha analisou e concedeu apenas uma.
A Distribuidora de Alimentos e Raízes obteve, em primeira instância judicial, três liminares contra a Secretaria de Fazenda do Estado do Ceará (Sefaz) que restringira benefícios fiscais à empresa. As liminares garantiram à distribuidora o direito de permanecer credenciada junto aos postos fiscais de fronteira da Sefaz e, em conseqüência, continuar com o direito de pagamento do ICMS de forma diferenciada, como previsto na Instrução Normativa nº 42/2002.
O estado do Ceará encaminhou ao STJ um pedido para suspender as três liminares. A defesa oficial alegou ser legítimo o descredenciamento da empresa contribuinte porque ela não quitou suas obrigações tributárias e causou sérios prejuízos ao erário (patrimônio público) e à coletividade. Para o estado, impedir a retenção das mercadorias da distribuidora viola o poder de polícia conferido à Fazenda Pública em sua atividade de fiscalização.
O ministro Cesar Rocha analisou apenas o pedido contra a liminar concedida na ação de revisão e anulação dos débitos tributários porque o estado do Ceará já obteve a suspensão das duas outras decisões provisórias por meio de julgado do Tribunal de Justiça local. Cesar Rocha acolheu as razões da defesa, uma vez que “a determinação judicial de recredenciamento de empresa excluída pela Fazenda Pública, no caso, representa indevida ingerência na discricionariedade administrativa e no poder de polícia, além de revelar grave ameaça às finanças do Estado”. O ministro destacou que o credenciamento de contribuintes para o pagamento do ICMS é um benefício concedido aos que preenchem determinadas condições, entre elas, o cumprimento regular das obrigações tributárias.
O ministro Cesar Rocha destacou a importância do ICMS para os estados – “é a principal fonte de receita dos entes estatais, de forma que qualquer medida judicial que comprometa a sua arrecadação tem o potencial de causar prejuízo aos cofres públicos”. Com isso, para o ministro, está justificada a preocupação do estado do Ceará “com a possibilidade de novas liminares semelhantes, gerando o chamado efeito multiplicador”.
A mesma preocupação – enfatiza o presidente do STJ em seu despacho – verifica-se em relação às determinações de abstenção de inscrição do nome do contribuinte no Cadine, de suspensão da exigência do crédito tributário e do impedimento de o estado ingressar com ações contra a empresa por causa da inadimplência. “As medidas, com efeito, interferem no direito de agir e engessam as atividades de fiscalização e arrecadação de impostos”.
O presidente do STJ, porém, manteve o efeito da liminar quanto à impossibilidade de retenção de mercadorias como forma de pagamento dos tributos em atraso. Segundo o ministro, com relação a essa questão, a liminar não tem potencial lesivo ao estado, além de “estar amparada no verbete nº 323 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, que tem por ‘inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”."
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Com todo o respeito, trata-se de um lamentável retrocesso. Espera-se que o STJ, por seu colegiado, reforme, em sede de agravo, a decisão de seu Presidente. Isso se ele próprio, no juízo de retratação, não a reconsiderar.
O pior de tudo, porém, são os seus fundamentos, que implicam autoritário retrocesso em matéria de sanções políticas.
Um contribuinte em débito não pode sofrer restrições só pelo fato de estar em débito, salvo, evidentemente, aquelas restrições inerentes aos próprios procedimentos de cobrança.
E mais: no caso, o débito estava sendo discutido, e as instâncias ordinárias determinaram a suspensão da exigibilidade do ICMS correspondente, nos termos expressamente previstos e autorizados no art. 151, IV e V do CTN. Entender que, só por isso, há "grave dano" ao erário é absurdo, e simplesmente impedirá qualquer liminar suspensiva da exigibilidade do crédito tributário, nos termos autorizados pelo já mencionado artigo.
O que deve ser examinado, ainda que em juízo provisório e precário, próprio das tutelas de urgência, é se o imposto é mesmo devido, no caso, ou não. Se a cobrança for indevida, suspendê-la não causa dano algum ao patrimônio público. Afinal, o Estado não se pode dizer titular do direito a uma arrecadação tributária ilegal ou inconstitucional.
Por outro lado, não pagar o ICMS quando passa pela fronteira, mas sim algum tempo depois, não é um "benefício". É a cobrança na fronteira que é exceção, uma anomalia aliás, sendo a regra, se a Constituição tivesse valor no caso, o pagamento do imposto apenas quando da realização de uma venda, na etapa subseqüente, no território do Estado.
Quanto ao "efeito multiplicador", peço licença para transcrever, aqui, o que escrevi no meu "Processo Tributário" (3.ed., São Paulo: Atlas, 2008):
Afirmar que, mesmo presentes os requisitos, o juiz deve indeferir a medida liminar quando houver risco de um “efeito multiplicador” é o mesmo que afirmar que ilegalidades isoladas podem ser corrigidas pelo Judiciário, mas abusos generalizados, contra um maior número de cidadãos, podem ficar alheios ao controle jurisdicional. O absurdo, com o devido respeito, dispensa comentários. (1)
(1) Com toda a razão, o TRF da 3a R. já decidiu, por seu órgão especial, que “não prevalece o argumento de proliferação de ações com idêntico objetivo, pois o Poder Judiciário não pode criar obstáculos para o exercício da cidadania, manifestando-se, em grau mais elevado, exatamente pelo acesso à jurisdição” (Ac. un. do Órgão Especial do TRF da 3a R. – Agr. na Susp. de Seg. 1864-SP – 96.03.052194-9 – Rel. Juiz Oliveira Lima – DJU II de 28.1.1997, p. 2971).
E, mais adiante, em item específico para esse "fundamento":
3.7.6 O argumento da “proliferação de liminares”
Eventualmente, liminares são indeferidas sob o argumento de que, caso fossem deferidas, haveria uma “proliferação de liminares”, com uma corrida em massa ao Judiciário para a obtenção de provimentos semelhantes.
Tal argumento, contudo, e não obstante o respeito que merecem aqueles que eventualmente o utilizam, beira as raias do disparate. Equivale a dizer que, quanto mais grave a arbitrariedade praticada pelo Poder Público, e quanto maior for o número de cidadãos prejudicados por essa ilegalidade, menores serão as possibilidades de obter-se uma tutela urgente que a coíba. Tal conclusão não é admissível em um Estado que se pretende seja “democrático” e, especialmente, “de direito”.
Na verdade, se estão presentes os requisitos necessários ao deferimento da medida, ou seja, se o magistrado convence-se, pelo menos provisoriamente, de que a tutela jurisdicional corre risco de ineficácia (perigo da demora), e de que provavelmente será concedida nos termos em que pleiteado pela parte que requer a medida urgente (fumaça do bom direito), e ainda de que não há risco de irreversibilidade que torne definitivo o que deveria ser provisório (perigo da demora inverso), não há motivo para não a deferir. A possibilidade de “multiplicação” de liminares semelhantes nada mais é que o reconhecimento de que a ilegalidade combatida naquele caso concreto é repetida em muitos outros semelhantes, e, caso isso fosse razão para não se conceder uma tutela de urgência, a prestação jurisdicional seria mera figura de retórica, especialmente contra o Poder Público. Quanto maior, mais flagrante e mais generalizada a arbitrariedade praticada pelo Estado, maiores seriam as razões para não serem deferidos provimentos judiciais contra a mesma, para evitar a “multiplicação”.
O argumento é de tal improcedência que, ao que nos parece, dispensa maiores demonstrações.
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