segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Imunidade tributária e livros "de valor"

Vez por outra surge alguém para, numa pretensa interpretação do art. 150, VI, "d", da CF/88, afirmar que a imunidade - que teria por fim incentivar o acesso à cultura - não se aplica a livros de baixa ou nenhuma utilidade cultural. Seria o caso dos álbuns de figurinhas, e dos livros pornográficos.
Li no Migalhas, a propósito, o seguinte:

Tramita no Congresso Nacional o PEC n.º 265/08, de autoria do Deputado Federal Henrique Afonso (PT-AC), que visa retirar a imunidade tributária, relativa a impostos, de publicações consideradas pornográficas. O advogado Lourival J. Santos, sócio titular da Lourival J. Santos - Advogados, por solicitação da ANER - Associação Nacional dos Editores de Revistas, elaborou parecer criticando a PEC e apontando irregularidades na referida proposta legislativa, inclusive a tentativa de cerceamento à liberdade de expressão. O trabalho foi entregue ao relator, Deputado Nelson Tadeu Felippelli (PMDB- DF). Clique aqui para lê-lo.

É dobrado o despropósito de restringir a imunidade aos livros valorosos, ao pretexto de que só em relação a estes estaria presente a finalidade de estimular a cultura.
A finalidade do instituto da imunidade tributária não é incentivar o acesso à cultura. Esse é um bom "efeito colateral" da imunidade, mas não é o seu objetivo. Para conseguir isso, uma simples isenção seria suficiente. A razão de ser da imunidade, que como se sabe se diferencia por ser uma GARANTIA CONSTITUCIONAL, é a de evitar que o tributo - the power to tax involves  the power to destroy - seja usado como forma indireta (mas eficientíssima) de censura. Um fim, digamos, "extrafiscal".
É para que isso não aconteça, de jeito nenhum, que a imunidade existe.
E não se trata de mera elocubração doutrinária. Nada disso. Como tive a oportunidade de destacar no "CTN anotado", com amparo no testemunho do tributarista (e constituinte em 1946, bom lembrar!) Aliomar Baleeiro,

"a finalidade da regra imunizante não é apenas 'difundir a cultura', mas especialmente evitar que o tributo seja utilizado como forma de censura (não se deve esquecer que o poder de tributar envolve o poder de destruir...). Por conta disso foi que se incluiu, a partir da Constituição de 1946, a referência também ao papel destinado à impressão de livros, jornais e periódicos. Como observa Aliomar Baleeiro, à época “estava muito recente a manobra ditatorial de subjugar o jornalismo por meio de contingenciamento do papel importado' (Aliomar Baleeiro, Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, 7.ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 339)." (MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Código tributário nacional - comentários à CF/88, ao CTN e às LCs 87/96 e 116/2003. São Paulo: Atlas, 2007, nota 50 ao art. 150 da CF/88)
"Estava muito recente", diz Baleeiro, porque o disposto no art. 150, VI, "d" de nossa CF/88 encontra-se textualmente nas Constituições brasileiras desde a CF/46, da qual ele foi constituinte.
E no que consiste a idéia de limitar a tributação aos livros bons, "relativizando-a" (os que inconfessavelmente odeiam direitos fundamentais adoram essa palavra...) ? Precisa no oposto à finalidade da regra imunizante. O que existe para evitar a censura, passará, paradoxalmente, a ser uma forma de censura.
O livro que for considerado (por quem?! eis o grande problema!) "ruim", será tributado. O livro "bom", será imune... E assim, tal como ocorre com o IPI incidente sobre cigarros e bebidas, ou sobre pães e bolachas, teremos tributos "extrafiscais" com finalidade "seletiva" em relação à cultura.
Não se trata de defender o livro pornográfico, ou livros de pouco ou nenhum valor. Nada disso. A questão está em respeitar a autonomia de cada um de escolher, de eleger quais livros têm valor, e quais não têm. EU quero decidir o que ler, e o que não ler, e não quero que ninguém interfira de modo cogente nessa escolha. Aceito sugestões, mas não imposições. E acredito que todos devem ter o mesmo direito.
Por isso, o STF já entendeu, ao reputar imunes listas telefônicas, e até álbuns de figurinhas, que a consideração quanto ao conteúdo não interfere no direito à imunidade. O que se exige, simplesmente, é que o livro não seja um livro em branco, vale dizer, que tenha algum conteúdo, sem que se faça qualquer juízo de valor sobre ele. Foi o que também anotei:

"IMUNIDADE DE LIVROS E EXTENSÃO A OUTRAS PUBLICAÇÕES COMO “ÁLBUNS DE FIGURINHAS” –  A imunidade em questão abrange inclusive os chamados “álbuns de figurinhas”, vale dizer, “álbuns a serem completados por cromos adesivos considerados tecnicamente ilustrações para crianças” (RE 339.124). Isso porque sua finalidade é a de “evitar embaraços ao exercício da liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação, bem como facilitar o acesso da população à cultura, à informação e à educação”, não tendo a CF/88 feito quaisquer ressalvas “quanto ao valor artístico ou didático, à relevância das informações divulgadas ou à qualidade cultural de uma publicação.” Por isso, “não cabe ao aplicador da norma constitucional em tela afastar este benefício fiscal instituído para proteger direito tão importante ao exercício da democracia, por força de um juízo subjetivo acerca da qualidade cultural ou do valor pedagógico de uma publicação destinada ao público infanto-juvenil.” (STF, 1ª T, RE nº 221.239-6/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, j. em 25/5/2004, DJ de 6/8/2004, RDDT 109/165). E, por igual razão, a imunidade abrange também o papel destinado à impressão dos álbuns de figurinhas (RE 339.124 AgR/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, j. em 19/4/2005, v.u., DJ de 20/5/2005, p. 26). Correto o entendimento do STF, pois, caso fosse admitida a aplicação da imunidade apenas a livros “valorosos”, considerados subjetivamente pelo intérprete como sendo “úteis” ou “positivos”, estabelecer-se-ia, por via indireta, precisamente o que a imunidade visa a evitar: a censura através do tributo.
Além dos álbuns de figurinhas, a imunidade do art. 150, VI, “d”, da CF/88 abrange também, segundo o STF:
- importação de encartes e capas para livros didáticos a serem distribuídos em fascículos semanais aos leitores do jornal (RE 225.955-RS - Rel. Min. Maurício Co
rrea – noticiado no informativo STF n.º 139);
- apostilas (RE 183.403-0/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, j. em 7/11/2000, v.u., DJ de 4/5/2001, p. 35, RDDT 70/199).
- listas telefônicas (RE 134.071/SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. em 15/9/1992, DJ de 30/10/1992, p. 19516). No mesmo sentido, v.g.: RE 116.510/RS, DJ de 8/3/1991, p. 2204, RTJ 133-03/1307; RE 130.012/RS, DJ de 8/3/1991, p. 2206." (MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Código tributário nacional - comentários à CF/88, ao CTN e às LCs 87/96 e 116/2003.São Paulo: Atlas, 2007, nota 46 ao art. 150 da CF/88)
O que gostei mesmo, contudo, foi da definição técnica de álbum de figurinhas. É muito engraçado ver como certas coisas são descritas. Outro dia, no fórum, não consegui não rir quando uma confusão causada por umas vacas que tinham sido deixado soltas foi descrita como "perturbação motivada pelo comportamento de bovinos, de propriedade do promovido, que pastavam livremente nas adjacências do imóvel do promovente, cuja cerca estava avariada..." E, no caso de álbuns de figurinhas, são em verdade "álbuns a serem completados por cromos adesivos considerados tecnicamente ilustrações para crianças”.
Conversei com minha filha a respeito do assunto, e ela ficou muito interessada. Primeiro pensou ser brincadeira, pois gosto de dar tratamento "jurídico" a algumas coisas de seu mundo infantil, para ver a sua reação (Às vezes me surpreende com algumas de suas tiradas, e, não sei se já disse aqui, foi ela quem escolheu o título do livro "Processo Tributário", dos quatro que a Atlas havia sugerido inicialmente). Pois bem. Mas, voltando ao álbum, ela ficou muito interessada, e, ainda, indignada com a pretensão de quem achou que os álbuns não têm valor. Disse ter neles aprendido a seqüência numérica, ter desenvolvido sua coordenação visual e motora (até comparou uns mais antigos, com figurinhas meio tortas, com os atuais) e se interessado pela leitura, pois, além das figurinhas, há frases, pequenos textos e explicações a respeito da vida dos personagens relacionados aos "cromos". Como um dos meus programas preferidos é ir com ela - e, agora, com seus dois irmãos - à banca de revistas, comprar novidades e os tais cromos, tive que concordar...
E para que não digam que estou inventando, vejam um blog que achei no qual o "livro ilustrado a ser completado com a fixação de cromos auto-adesivos adquiridos separadamente" (que definição!) é usado para fins eminentemente pedagógicos: 

...
Ah, só agora notei algumas coincidências. Primeiro, do tema imunidade e livro pornográfico, precisamente o tema abordado pelo Prof. Pinto Ferreira na citação que fiz alguns posts atrás. Depois, dos "cromos" adesivos e do "chrome" do Google...
A propósito do chrome (não consigo não misturar os assuntos...), alguém viu o comentário, feito naquele post, sobre a questão dos direitos autorais? Achei meio estranho, mas gostaria de ouvir outras pessoas a respeito.

4 comentários:

George Marmelstein disse...

Belo post, Hugo.

Dê uma lida também no livro "Os Sete Minutos", de Irving Wallace, que já comentei lá no blog.

Ele tem bons argumentos em favor da tese que você defende.

George Marmelstein

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Valeu pela dica, George. Eu já o estava procurando, quando vi aquela excelente citação sobre o dicionário.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Digo, já o estava procurando desde quando vi a citação, que você fez no seu blog, sobre o dicionário e as "palavras" que certas religiosas ficaram felizes de não ter encontrado (por as haverem, naturalmente, procurado).
um abraço

Santos disse...

Sobre o livro Se a Justiça Falasse, ver:
http://sol.sapo.pt/blogs/helderfraguas/archive/2010/07/18/Helder-Fr_E100_guas_3A00_-2-livros.aspx