terça-feira, 30 de setembro de 2008

Machado de Assis e o homossexualismo feminino

Fala-se muito, nos últimos dias, de Machado de Assis, seguramente um dos maiores, senão o maior, escritor brasileiro. A razão é o centenário de sua morte.
O site do Ministério da Cultura, inclusive, em uma iniciativa louvável, disponibilizou toda a sua obra, nos formatos doc e pdf, em site de primorosa feitura. Para acessá-lo, clique aqui.
Mas o que me motiva a fazer este post, como o título sugere, é o homossexualismo feminino. Ou, pelo menos, a sua suposta presença na obra do mencionado autor.
Refiro-me ao conto "Benedita", no qual se lê:

"CAPÍTULO PRIMEIRO
A coisa mais árdua do mundo, depois do ofício de governar, seria dizer a idade exata de D. Benedita. Uns davam-lhe quarenta anos, outros quarenta e cinco, alguns trinta e seis. Um corretor de fundos descia aos vinte e nove; mas esta opinião, eivada de intenções ocultas, carecia daquele cunho de sinceridade que todos gostamos de achar nos conceitos humanos. Nem eu a cito, senão para dizer, desde logo, que D. Benedita foi sempre um padrão de bons costumes. A astúcia do corretor não fez mais do que indigná-la, embora, momentaneamente; digo momentaneamente. Quanto às outras conjeturas, oscilando entre os trinta e seis e os quarenta e cinco, não desdiziam das feições de D. Benedita, que eram maduramente graves e juvenilmente graciosas. Mas, se alguma coisa admira é que houvesse suposições neste negócio, quando bastava interrogá-la para saber a verdade verdadeira.

D. Benedita fez quarenta e dois anos no domingo dezenove de setembro de 1869.

São seis horas da tarde; a mesa da família está ladeada de parentes e amigos, em número de vinte ou vinte e cinco pessoas. Muitas dessas estiveram no jantar de 1868, no de 1867 e no de 1866, e ouviram sempre aludir francamente à idade da dona da casa. Além disso, vêem-se ali, à mesa, uma moça e um rapaz, seus filhos; este é, decerto, no tamanho e nas maneiras, um tanto menino; mas a moça, Eulália, contando dezoito anos, parece ter vinte e um, tal é a severidade
dos modos e das feições.

A alegria dos convivas, a excelência do jantar, certas negociações matrimoniais incumbidas ao cônego Roxo, aqui presente, e das quais se falará mais abaixo, as boas qualidades da dona da casa, tudo isso dá à festa um caráter íntimo e feliz. O cônego levanta-se para trinchar o peru. D. Benedita acatava esse uso nacional das casas modestas de confiar o peru a um dos convivas, em vez de o fazer retalhar fora da mesa por mãos servis, e o cônego era o pianista daquelas ocasiões
solenes. Ninguém conhecia melhor a anatomia do animal, nem sabia operar com mais presteza. Talvez, — e este fenômeno fica para os entendidos, — talvez a circunstância do canonicato aumentasse ao trinchante, no espírito dos convivas, uma certa soma de prestígio, que ele não teria, por exemplo, se fosse um simples estudante de matemáticas, ou um amanuense de secretaria. Mas, por outro lado, um estudante ou um amanuense, sem a lição do longo uso, poderia dispor da arte consumada do cônego? É outra questão importante.

Venhamos, porém, aos demais convivas, que estão parados, conversando; reina o burburinho próprio dos estômagos meio regalados, o riso da natureza que caminha para a repleção; é um instante de repouso.

D. Benedita fala, como as suas visitas, mas não fala para todas, senão para uma, que está sentada ao pé dela. Essa é uma senhora gorda, simpática, muito risonha, mãe de um bacharel de vinte e dois anos, o Leandrinho, que está sentado defronte delas. D. Benedita não se contenta de falar à senhora gorda, tem uma das mãos desta entre as suas; e não se contenta de lhe ter presa a mão, fita-lhe uns olhos namorados, vivamente namorados. Não os fita, note-se bem, de um modo persistente e longo, mas inquieto, miúdo, repetido, instantâneo. Em todo caso, há muita ternura naquele gesto; e, dado que não a houvesse, não se perderia nada, porque D. Benedita repete com a boca a D. Maria dos Anjos tudo o que com os olhos lhe tem dito: — que está encantada, que considera uma fortuna conhecê-la, que é muito simpática, muito digna, que traz o coração nos olhos, etc., etc., etc.

Uma de suas amigas diz-lhe, rindo, que está com ciúmes.

— Que arrebente! responde ela, rindo também.

E voltando-se para a outra:

— Não acha? ninguém deve meter-se com a nossa vida.

E aí tornavam as finezas, os encarecimentos, os risos, as ofertas, mais isto, mais aquilo, — um projeto de passeio, outro de teatro, e promessas de muitas visitas, tudo com tamanha expansão e calor, que a outra palpitava de alegria e reconhecimento.

O peru está comido. D. Maria dos Anjos faz um sinal ao filho; este levanta-se e pede que o acompanhem em um brinde:
 — Meus senhores, é preciso desmentir esta máxima dos franceses: — les absents ont tort. Bebamos a alguém que está longe, muito longe, no espaço, mas perto, muito perto, no coração de sua digna esposa: — bebamos ao ilustre Desembargador Proença.

A assembléia não correspondeu vivamente ao brinde; e para compreendê-lo basta ver o rosto triste da dona da casa. Os parentes e os mais íntimos disseram baixinho entre si que o Leandrinho fora estouvado; enfim, bebeu-se, mas sem estrépito; ao que parece, para não avivar a dor de D. Benedita. Vã precaução! D. Benedita, não podendo conter-se, deixou rebentarem-lhe as lágrimas, levantou-se da mesa, retirou-se da sala. D. Maria dos Anjos acompanhou-a. Sucedeu um silêncio mortal entre os convivas. Eulália pediu a todos que continuassem, que a mãe voltava já.

— Mamãe é muito sensível, disse ela, e a idéia de que papai está longe de nós...
O Leandrinho, consternado, pediu desculpa a Eulália. Um sujeito, ao lado dele, explicou-lhe que D. Benedita não podia ouvir falar do marido sem receber um golpe no coração — e chorar logo; ao que o Leandrinho acudiu dizendo que sabia da tristeza dela, mas estava longe de supor que o seu brinde tivesse tão mau efeito.
— Pois era a coisa mais natural, explicou o sujeito, porque ela morre pelo marido.
— O cônego, acudiu Leandrinho, disse-me que ele foi para o Pará há uns dois anos...
— Dois anos e meio; foi nomeado desembargador pelo ministério Zacarias. Ele queria a Relação de São Paulo, ou da Bahia; mas não pôde ser e aceitou a do Pará.
— Não voltou mais?
— Não voltou.
— D. Benedita naturalmente tem medo de embarcar...
— Creio que não. Já foi uma vez à Europa. Se bem me lembro, ela ficou para arranjar alguns negócios de família; mas foi ficando, ficando, e agora...
— Mas era muito melhor ter ido em vez de padecer assim... Conhece o marido?
— Conheço; um homem muito distinto, e ainda moço, forte; não terá mais de quarenta e cinco anos. Alto, barbado, bonito. Aqui há tempos disse-se que ele não teimava com a mulher, porque estava lá de amores com uma viúva.
— Ah!
— E houve até quem viesse contá-lo a ela mesma. Imagine como a pobre senhora ficou! Chorou uma noite inteira, no dia seguinte não quis almoçar, e deu todas as ordens para seguir no primeiro vapor.
— Mas não foi?
— Não foi; desfez a viagem daí a três dias.

D. Benedita voltou nesse momento, pelo braço de D. Maria dos Anjos. Trazia um sorriso envergonhado; pediu desculpa da interrupção, e sentou-se com a recente amiga ao lado, agradecendo os cuidados que lhe deu, pegando-lhe outra vez na mão.
— Vejo que me quer bem, disse ela.
— A senhora merece, disse D. Maria dos Anjos.
— Mereço? inquiriu ela entre desvanecida e modesta.

E declarou que não, que a outra é que era boa, um anjo, um verdadeiro anjo; palavra que ela sublinhou com o mesmo olhar namorado, não persistente e longo, mas inquieto e repetido. O cônego, pela sua parte, com o fim de apagar a lembrança do incidente, procurou generalizar a conversa, dando-lhe por assunto a eleição do melhor doce. Os pareceres divergiram muito. Uns acharam que era o de coco, outros o de caju, alguns o de laranja, etc. Um dos convivas, o Leandrinho, autor do brinde, dizia com os olhos, — não com a boca, — e dizia-o de um modo astucioso, que o melhor doce eram as faces de Eulália, um doce moreno, corado; dito que a mãe dele interiormente aprovava, e que a mãe dela não podia ver, tão entregue estava à contemplação da recente amiga. Um anjo, um verdadeiro anjo!"

Constaria, aí, nos itens em negrito, a indicação de algo mais que amizade entre as duas amigas?
Não tenho o propósito, evidentemente, de discutir o homossexualismo em si, seja do ponto de vista ético, biológico, jurídico ou religioso. Não é isso o que interessa. A questão, que suscito, relaciona-se à atualidade do escritor, que mencionava tema - no Século XIX - que, conquanto sempre presente nas sociedades humanas, mesmo hoje é polêmico quando abordado em telenovelas.
Josué Montello - no Diário do Entardecer - viu nessa narrativa um evidente exemplo de homossexualismo feminino. Depois transcrevo, aqui no blog, o que ele disse sobre o assunto.
Se for assim mesmo, pode-se dizer então, agora que tanto se fala dele em face do centenário de sua morte, que Machado de Assis estava à frente de seu tempo também nesse ponto. Não só no estilo, na maneira de dialogar com o leitor e de estruturar as histórias, mas também na tolerância e no reconhecimento das diferenças. Ou não?
Confesso que, quando li o conto pela primeira vez, não percebi nada disso. Relendo-o agora, depois de ter sido a tanto provocado pela observação de Montello, continuo sem ter essa certeza. Não teria a amiga apenas saído para consolar a outra, triste por haver sido deixada pelo marido, e isso haver sido inconvenientemente mencionado à mesa?

4 comentários:

bruna disse...

é a PT

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

PT?! Mas ele escreveu isso faz mais de 100 anos!
E o Montello comentou há quase 50!

bruna disse...

isso foi só uma brincadeira..

Anônimo disse...

As mulheres finalmente estão descobrindo o que os homens já sabem há séculos: que mulher é uma delícia!