quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Ainda o pós-positivismo

Tem sido afirmado, já tratei aqui em alguns posts (clique aqui e aqui), que o pós-positivismo seria a superação dialética entre jusnaturalismo e positivismo jurídico.
A superação teria ocorrido por conta da positivação - ou do reconhecimento da positividade - de princípios consagrando direitos essenciais à promoção da dignidade da pessoa humana, conhecidos como direitos fundamentais.
Mas e se fossem consagrados, ou positivados, princípios "injustos"? Poderia ser mantida a afirmação de que o antagonismo foi superado?
É evidente que houve certa superação do antagonismo entre jusnaturalismo e positivismo, quando se cogita da função do intérprete e do aplicador da lei. Nem se preconiza que o intérprete deva simplesmente adequar a norma ao direito natural, mas tampouco se afasta toda a análise a respeito dos elementos que influenciam sua inafastável parcela criadora na aplicação da norma, por suposta acientificidade. Mas, insisto: e se a ordem jurídica, em vez de positivar princípios que consubstanciam o reconhecimento dos direitos humanos, positiva normas (regras e princípios) injustas? Imagine-se, por hipótese, um ordenamento jurídico que consagre, em sua Constituição, o seguinte artigo:
"Art. 1.º O Estado XXX rege-se pelos seguintes princípios:
I – superioridade da raça ariana;
II – proteção ao meio ambiente;
III - inferioridade do sexo feminino;
IV – proteção à livre-iniciativa.”

Só para que vejamos a natureza formal e positivista de muitos dos (excelentes) autores contemporâneos, basta que se perceba que a sua definição de princípio contempla as "normas" acima mencionadas. Afinal, é possível dizer que contêm mandamentos de otimização. Ou, na definição de Humberto Ávila, normas
imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção. (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 4.ed, São Paulo; Malheiros, 2004, p. 70)

Poder-se-ia até teorizar, adicionalmente, que, em face do princípio da livre-iniciativa, indivíduos não-arianos poderiam exercer atividade econômica, mas não teriam as mesmas vantagens que os indivíduos arianos, pois seria necessário conciliar o princípio contido no inciso IV com o veiculado pelo inciso I. Uma empresa de um não-ariano, por exemplo, sofreria mais restrições de natureza ambiental do que a empresa de um ariano, pois com isso se conciliariam de forma otimizada os mandamentos dos incisos I, II e VI...

Como seria possível afirmar a invalidade das normas apontadas, postas pelo poder constituinte originário em um estado imaginário, sem recorrer à apontada dicotomia entre DN e DP que se diz superada?

17 comentários:

diogobacha disse...

Belissima indagação Hugo!!!Realmente trata-se de questão bem complicada. À vingar o entedimento, pelo menos aqui no Brasil, do STF que refuta a teoria de Otto Bachof das Normas Constitucionais Inconstitucionais, figura-se difícil conceber a invalidade da positivação dos princípios injustos. Sinceramente, a não ser com uma interpretação conforme à dignidade da pessoa humana ou considerar os Tratados em direitos humanos com natureza supra-constitucional não vislumbro instrumento jurídico que possa invalidar os princípios mencionados no exemplo.
Muito bem pensado Hugo, você está de parabéns por este blog e por nos trazer essas indagações que nos enriquece sobremaneira.

Unknown disse...

Entendo que, quando se menciona que o pós-positivismo superou a dicotomia entre direito natural e direito positivo, não é somente porque há princípios(mandados de otimização), mas porque, além de existirem, eles têm como finalidade um valor. Somente com a conjugação desses dois fatores se pode falar de um pós-positivismo apto a superar a mencionada dicotomia. O ordenamento fictício que você expôs não seria, nesse sentido, pós-positivista, não afastando, portanto, o clássico debate. Certamente, isso suscita também o questionamento do que seria valor, no caso, se a superioridade de raças é um, o que, a meu ver, em função de uma análise moral, não é.

George Marmelstein disse...

Hugo,

concordo com o Juraci nessa discussão. Ou seja, um ordenamento jurídico que contemple valores que se distancie da idéia de dignidade da pessoa humana (igual dignidade, diga-se de passagem) não é um ordenamento legítimo e, como tal, não pode ser considerado como jurídico, já que o direito "pós-positivista" necessariamente tem que ter a tal da "pretensão de correção" (Alexy).

Fora isso, você tem razão quando diz que, diante de um ordenamento injusto, sempre haverá espaço para discutir o direito natural.

George

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Diogo,
Existem realmente critérios para questionar os "princípios" que mencionei no post. Mas eles não são decorrentes de normas postas.
Isso mostra que o juízo crítico que alguém pode fazer de uma norma não depende apenas de critérios fornecidos por outras normas, MESMO NO ÂMBITO DO PÓS-POSITIVISMO...
um abraço, e obrigado pelas palavras sobre o blog.

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Juraci,
O que é pós-positivista é o ordenamento, ou a maneira como ele pode ser estudado? Veja o rol de princípios da Carta de 1824, que citei posts atrás. Ela era pós-positivista? Ou pós-positivista é a maneira de ver as tais disposições? Parece ser a segunda hipótese a correta, mas, no caso do artigo imaginário que citei, não haveria abordagem pós-positivista que desse jeito.
Veja, ainda, que os princípios que eu citei, no exemplo do Estado XXX, consagram sim valores. Mas são valores que podem ser considerados indesejáveis, ruins, injustos...
Em suma, é possível fazer juízos de valor sobre eles, juízos estes que não estão calcados em normas!
É a possibilidade de fazer juízo de valor sobre alguma coisa o que chamamos Direito Natural?
Se é, tem como afastá-lo?

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

George,
Pensei também na "pretensão de correção", do Alexy, como argumento para que se afirme que a Constituição do Estado XXX não seria sequer "Direito".
Mas veja que isso implica a admissão de um padrão de valores suprapositivo. Afinal, a palavra "correção" implica juízo de valor, implica o reconhecimento de que existe algo errado e algo correto "acima" das normas, tanto que elas têm de ter essa pretensão, de atingir o "correto". Não é isso jusnaturalista?
Onde está a superação da dialética?

Unknown disse...

Caro Hugo,
Entendo não haver uma apartação absoluta entre o ordenamento e o método de analisá-lo. Não vejo como apartar totalmente objeto, sujeito e método numa abordagem jurídica, precisamente porque a norma não é um dado e sim um construído. Achei muito feliz uma colocação do Eros Grau em um de seus livros : “o conjunto das disposições (texto, enunciados) é apenas ordenamento em potência”.

No caso da Constituição de 1824, o texto tinha a potência de gerar um ordenamento jurídico pós-positivista, mas, na época, ainda não existia o método hermenêutico apto a efetivar essa potencialidade. No caso do ordenamento do Estado XXX, o próprio enunciado já impede mesmo que haja em potência uma ordem pós-positivista, ainda que haja o método. Somente diante de enunciados que exprimam essa potência, de um método adequado e de sujeitos dispostos a utilizá-lo é que realmente haverá um ordenamento pós-positivista. Foi nesse sentido que entendi não existir, no caso, uma ordem pós-positivista. Não é possível construí-la, porque o objeto (o enunciado) não o permite, ainda que tenhamos o método. Simplificando nos moldes de seu post passado: “não dá para tirar leite de pedra”.

Quando você mencionou “valores injustos”, tocou justamente no ponto que entendo extremamente complexo: o que é valor? Confesso ainda não ter elementos ou leitura suficientes que me permitam concluir com maior grau de segurança, mas entendo não haver valores injustos, se forem injustos não são valores, são “desvalores”. Entendo, ainda, ser possível fazer juízo de valor sem o direito natural, tanto que, propositalmente, destaquei não considerar a superioridade de raça ou sexo um valor em função de uma abordagem moral, como alguém poderia fazê-lo em função de uma posição religiosa.

Em sendo possível juízo de valor sem o direito natural é possível afastá-lo. Veja bem, é possível, não sei se seria recomendável, válido ou justo. Afastar um juízo de valor calcado no direito natural em um estado laico não me parece válido. Mas se for um estado com bases religiosas, sem fanatismos ou posições mais controvertidas para nossos padrões ocidentais, seria justo afastar um juízo de valor decorrente do direito natural?

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Juraci,
Tudo depende do que chamamos "direito natural".
Se alguém examina o direito posto, e pensa: ah... não deveria ser assim, deveria ser assado... Faz, a respeito do direito posto, um juízo de valor.
Qual o critério para esse juízo de valor? Um direito que o cara que faz o juízo acharia melhor do que aquele positivado. E o que é isso senão o tal DN?

Unknown disse...
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Bruno Weyne disse...
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Unknown disse...

Caro Hugo,
Esse, a meu ver, é o problema do direito natural: sua definição.
Lembro da figuração de nosso prof, Arnaldo Vasconcelos: é como nossa sombra, sempre que tentamos alcança-la, ela dá um passo mais adiante. Isso tem o efeito de nos manter caminhando, mas em direção a quê? Daí a necessidade de se valer de elementos certamente não jurídicos.

Bruno Weyne disse...

Prezado Hugo,

A função de invalidar esses princípios injustos é justamente a que assume os direitos humanos (positivados na forma de direitos fundamentais para alcançar uma maior efetivação). Os direitos humanos, nesse caso, atuariam como verdadeiros direitos morais (Cf. Nino, Carlos Santiago. Ética y derechos humanos, cap. 1 e Alexy, Robert. Constitucionalismo discursivo, 2º texto da coletânea).

Os direitos humanos, enquanto direitos morais, têem esse caráter de maior componenete de legitimidade de um ordenamento jurídico-positivo, ambos os autores citados deixam claro isso.

A diferença, porém, entre direitos humanos (morais) e direitos naturais é a exigência de justificação própria daqueles direitos do primeiro gênero. Nesse sentido, Alexy diz: para a validade ou existência de um direito moral, é suficiente que a norma que compõe a sua base seja válida moralmente, e “Uma norma vale moralmente quando perante cada um que aceita uma fundamentação racional, pode ser justificada. Direitos do homem existem, com isso, rigorosamente então, quando eles, [...] perante cada um, podem ser justificados.

Os mesmos autores referidos dizem ainda que, embora os direitos humanos sejam direitos morais, deve-se somar a eles uma validade jurídico-positiva, a fim de lhes garantir uma maior imposição...

20 de Novembro

Anônimo disse...

Com a devida vênia aos entendimentos já explanados aqui, acrescento apenas que a dicotomia positivismo “versus” jusnaturalismo carece de efeitos práticos, notadamente se o intérprete tem em vista modernos métodos de interpretação jurídica.

Deveras, se os efeitos de determinada norma possam ser, digamos, nocivos à sociedade, o que importa saber é sua “ratio”, isto é, o que nela é tido como merecedor de repúdio e qual o contraponto dos interesses em jogo. Em vez de se discutir se a norma é justa, ou não – conceito, para dizer o mínimo, metafísico, especialmente, se os envolvidos estiverem em lados opostos do conflito – mais prático seria a busca da “ratio” da lei, a partir de conceitos como ética, igualdade (e desigualdade para desiguais, como já ensinara Aristóteles), direitos fundamentais, etc., mas sempre em contraponto às forças irracionais, como ódio, poder, e outras.

Juristas modernos, como Phillip Heck, Müller-Erzbach, e Karl Engisch, resolvem eventuais paradoxos da norma pela mais simples – talvez, a melhor de todas – ferramenta à disposição do jurista: a interpretação. E nesssa construção progressita da norma, referidos juristas utilizam a Interpretação Causal e Jurisprudência de Interesses, adequando a lei aos fatos concretos e, antes de tudo, considerando a valoração dos fatores sociais envolvidos, prevalecendo o mais elevado, o mais forte, o plano mais alto dos conceitos e idéias defendidas pelo ordenamento jurídico, pelo que se dará preferência dum interesse sobre outro.

A discussão sobre eventuais injustiças causadas pela aplicação da norma tende a restar superada se o exegeta, levando em conta os interesses em jogo, que nem sempre estão lado a lado, procura dirimi-los assente, exatamente, no antagonismo que deles emana, tal que a proteção de um realiza-se, em regra, na preterição de outro.

Por sinal, a 'Construction”, preconizada por Henry Campbell Black, no plano constitucional envereda para o mesmo caminho.

Abraços aos Colegas

Marcos Fernandes Gonçalves

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Caro Marcos,

Você tem razão. No campo da interpretação, realmente, a apontada dicotomia está superada.
Mas a interpretação tem limites.
Como "interpretar" os dispositivos imaginários que citei no post?
Além disso, a questão também é recolocada quando se está a julgar, do ponto de vista externo,uma ordem jurídica cujos "intérpretes" oficiais não necessariamente consideram injusta, problema que se coloca no âmbito da universalização dos direitos humanos...

Anônimo disse...

Hugo,

Realmente, tratam-se de questões de alta indagação. Por sinal, essa discussão teve seu nascedouro, quiçá, lá na Roma Antiga, nos tempos dos Jurisconsultos (os Mestres...), tanto que criaram a máxima, que nos arrepia até hoje: "justo é dar a cada um o que é seu..." (lembrando que, para eles, as palavras "justo" e "direito" eram utilizadas com o mesmo sentido).

O Grande problema é: o que é esse tal de "seu"? e o "meu", o "nosso"? (sem olvidar, também, que a coisa pública nesse país costuma ser maltratada).

Vou mais longe: o conceito de justo seria o mesmo para "José" e para "João"? Ah, mas, vão dizer: o justo é o definido pela maioria...; mas, que maioria? a que está no Poder? Maioria representada pela idéias de determinado Partido Político?

E, para falar de universalização, fica a dúvida? quem ou o quê define essa universalização?

Realmente, não é fácil discutir esse tema.

Grande abraço, e obrigado pelo retorno.

Marcos Fernandes Gonçalves

Fernando Silva disse...

Caro Hugo, gostei muito da sua indagação. entretanto, gostaria de acrescentar uma observação:

Quando os pós-positivistas alegam a superação da dicotomia entre direito positivo e direito natural, acho que eles estão se referindo ao fato de que o direito positivo pode ser utilizado(metodologicamente falando)para o alcançe do direito natural (materialmente falando).

É como se eles levassem em conta que ambas correntes podem coexistir, levando-se em consideraçaõ que uma é ideologia (ou metafísica) do direito e outra é a ciência (ou práxis)do dirieto.

Assim, acredito que a convivência entre ambos só é possível quando se admite que elas são coisas diferentes mas, complementares. No seu post você usou um mesmo critério para julgar ambas as correntes: o critério de justiça.

é claro que os conceitos jusnaturalistas e pós-positivistas de justiça são diferentes. Entretanto, não acho que isso invalide a convivência de ambas correntes nos termos em que eu coloquei aí acima.

Abraços e parabéns pelo blog!

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Fernando,
Muito bom seu comentário.
Mas note: os jusnaturalistas jamais negaram que o direito positivo devesse ser usado como instrumento para a realização da justiça. Daí a definição do direito (positivo) como "dever ser para ser justo".
Nesse sentido, então, os pós-positivistas seriam jusnaturalistas?
Mas e se eles só admitem isso porque o direito positivo, atualmente, e circunstancialmente, tem determinado conteúdo, eles seriam positivistas?
Daí porque afirmo que a dicotomia não parece tão superada assim...