Recebi por e-mail a seguinte decisão, enviada pelo amigo Eduardo Fortunato Bim.
É interessante sobretudo por rebater o argumento de que a despesa do Estado com o tratamento de saúde pleiteado pelo autor da ação pode prejudicar os planos do Estado para a saúde pública como um todo, violando o direito à saúde e à vida de um número muito maior de pessoas.
Esse argumento, que tem o seu peso (afinal, o dinheiro usado para custear tratamento de uma pessoa com doença rara poderia ser empregado para salvar centenas de pessoas que morrem de doenças de tratamento mais barato), foi respondido de forma muito arguta: se faltam recursos para tratar todas as doenças, as banais e as raras, que se tirem recursos destinados à publicidade...
Realmente, não pode haver gasto público mais inútil. A publicidade, vital na iniciativa privada, é quase sempre uma inutilidade e um desvio no setor público. Com exceção da publicação de leis e atos normativos (de custo irrisório), e de eventuais campanhas de conscientização e prevenção de doenças, o "grosso" das despesas com publicidade diz respeito a propagandas que, em última análise, promovem a pessoa do político responsável pela realização veiculada, ou seu partido.
Mas, como dito, a decisão é polêmica, pois tais despesas não devem estar previstas no orçamento? Pode o Judiciário dizer de onde tirar e onde aplicar recursos? Se não puder, como regra, será que essa impossibilidade estará presente mesmo em se tratando da efetivação de um direito fundamental?
Eis a decisão:
PROCESSUAL CIVIL, CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TFD - TRATAMENTO FORA DO DOMICÍLIO. SUS - SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. DIÁRIAS. PORTARIA Nº 55/99 DO MINISTÉRIO DA SAÚDE. REGULAMENTAÇÃO. OMISSÃO DA ENTIDADE FEDERADA. RESPONSABILIDADE. CONDENAÇÃO. NÃO PROVIMENTO DOS RECURSOS.- Recurso necessário (tido por interposto) e voluntário contra sentença de procedência do pedido formulado em ação civil pública, tendo sido condenado o Estado do Rio Grande do Norte no pagamento de diárias, para despesas com alimentação e pernoite, aos cidadãos necessitados do TFD - Tratamento Fora do Domicílio do SUS - Sistema Único de Saúde e seus acompanhantes, tendo como valores mínimos os previstos na tabela de referência da Portaria nº 55/99 do Ministério da Saúde.- Não há que se exigir a formação, in casu, de litisconsórcio passivo necessário entre União, Estado e Municípios, a despeito da sistemática de funcionamento compósita do SUS, bastando a presença do Estado-membro, seja porque, tratando-se de responsabilidade solidária, qualquer dos entes da Federação poderia compor o pólo passivo, seja porque está sendo discutido o (não) cumprimento deobrigação que, na distribuição de competência, incumbe ao Estado federado.- Nos termos da Norma Constitucional (arts. 5º, 6º e 196), o direito à saúde é marcado por sua “fundamentalidade”, considerando-se mesmo que sua garantia é expressão de resguardo da própria vida, maior bem de todos, do qual os demais direitos extraem sentido. Analisando o conceito de “fundamentalidade”, J J Gomes Canotilho concebe-o sob duas perspectivas: a “fundamentalidade formal”, correspondente à constitucionalização, à localização de direitos reputados fundamentais no ápice da pirâmide normativa, com as conseqüências desse fato derivadas – demarcação das possibilidades do ordenamento jurídico e vinculatividade dos poderes públicos –, e a “fundamentalidade material”, identificadora dos direitos fundamentais a partir do seu conteúdo “constitutivo das estruturas básicas do Estado e da sociedade”, permissiva do reconhecimento de outros direitos não expressamente tipificados no rol constitucional, mas equiparáveis em dignidade e relevância aos direitos formalmente constitucionais (“norma de fattispecie aberta”). Em ambas as visões, exsurge a magnitude da essencialidade, embora seja patente a maior significância compreensiva da segunda. “No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados” (José Afonso da Silva). Os direitos fundamentais cumprem, nessa contextura, determinadas funções: exigem prestações do Estado, protegem diante do poder público e de terceiros, fomentam a paridade entre os indivíduos,designam os alicerces sobre os quais se constrói e se orienta o ordenamento jurídico (“eficácia irradiante”). Têm força, ao mesmo tempo, por assim dizer, de princípio e de regra.- O SUS caracteriza-se pela descentralização, “com direção única em cada esfera de governo”, devendo ser financiado com recursos federais, estaduais e municipais (art. 198, § 1º, da CF/88). A Lei nº 8.080/90 fixa, em seu art. 7º, que o SUS é regido, dentre outros, pelo princípio da “integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema”, bem como pelo preceito da “conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de serviços de assistência à saúde da população”. - O TFD do SUS, regulado pela Portaria nº 55/99 do Ministério da Saúde, é instrumento que se destina aos pacientes que, já tendo exaurido as possibilidades de tratamento médico para os seus males no local (Município) de origem, precisam se deslocar em busca da adequada assistência médica, apenas encontrável em localidade diversa do território nacional. O programa inclui, além dos procedimentos médicos, passagens de ida e volta e ajuda de custo para alimentação e hospedagem do paciente e do acompanhante. - De conformidade com as diretrizes do sistema, a responsabilidade pelo pagamento das despesas com deslocamento dentro de um mesmo Estado é da Secretaria Municipal de Saúde, e entre Estados é da Secretaria Estadual de Saúde.- Segundo reza, ademais, a Portaria nº 55/99 do Ministério da Saúde, “caberá às Secretarias de Estado da Saúde/SES propor às respectivas Comissões Intergestoras Bipartites - CIB a estratégia de gestão entendida como: definição de responsabilidades das SES e das SMS para a autorização do TFD; estratégia de utilização com o estabelecimento de critérios, rotinas e fluxos, de acordo com a realidade de cada região e definição dos recursos financeiros destinados ao TFD”. Mais que isso, foi estabelecido um prazo: “A normatização acordada será sistematizada em Manual Estadual de TFD a ser aprovado pela CIB, no prazo de 90 dias, a partir da vigência desta portaria, e encaminhada, posteriormente, ao Departamento de Assistência e Serviços de Saúde/SAS/MS, para conhecimento” (art. 5º). - Se o Estado-membro, confessadamente, não está honrando com a obrigação de pagar as diárias para os trajetos interestaduais, como lhe compete, na distribuição das incumbências entre os entes da Federação, em relação à saúde, e, particularmente, se ele se omitiu, deixando de expedir, como se lhe foi exigido, a regulamentação necessária à implementação adequada do programa TFD (apenas o fazendo quando a ação civil pública já havia sido ajuizada, transcorridos mais de sete anos desde a determinação de expedição de regulamento), deve ele ser impelido a cumprir suas atribuições.- Por certo que não se ajusta ao Texto Constitucional inviabilizar o deslocamento de pacientes às localidades com assistência médica adequada, mormente no caso de enfermidades extremamente graves, como as relatadas nos autos (doentes submetidos a cirurgias na coluna, transplantados renal e hepático, um dos quais também acometido de câncer).- “O Estado, ao negar a proteção perseguida nas circunstâncias dos autos, omitindo-se em garantir o direito fundamental à saúde, humilha a cidadania, descumpre o seu dever constitucional e ostentaprática violenta de atentado à dignidade humana e à vida. É totalitário e insensível” (Primeira Turma, RESP 948579/RS, Rel. Min. José Delgado, j. em 28.08.2007). - Diversamente do alegado, os valores envolvidos não têm o condão de colocar em risco o orçamento do Estado (a diária é orçada, na tabela de referência do SUS, em R$ 30,00). Ainda que ele não tivesse o importe à disposição sob essa rubrica, a garantia da preservação da saúde dos cidadãos autoriza determinação judicial para que os recursos, inicialmente previstos para fins publicitários, sejam direcionados ao TFD, tudo em função do sopeso dos bens jurídicosa resguardar.- A norma não exige a condição de “carência” do paciente para que ele possa gozar do benefício, apenas asseverando que “o TFD será concedido, exclusivamente, a pacientes atendidos na rede pública ou conveniada/contratada do SUS” (§ 2º do art. 1º da Portaria nº 55/99).- Ônus de sucumbência regularmente arbitrados.- Pelo não provimento da remessa oficial e da apelação.
Apelação Cível nº 425.249-RN (Processo nº 2006.84.00.005522-4)Relator: Juiz Francisco Cavalcanti (Julgado em 8 de novembro de 2007, por unanimidade - grifei)
Atualização:
Vejam o que George Marmelstein Lima postou a respeito desse assunto.
3 comentários:
Hugo, muito interessante a decisão, sobretudo vindo do TRF5 e do Des. Francisco Queiroz Cavalcanti. Depois explico o porquê.
Vou fazer um post no meu blog sobre ela.
Prezado Hugo, certamente a saúde está nos limites do conceito de mínimo existencial, mas ainda assim um dos argumentos principais do Estado para a não-concretização PLENA de tal direito é a possibilidade do efeito multiplicador daquela decisão favorável a um determinado doente, mesmo em casos em que o valor pago para sustentar aquele indivíduo seja reduzido frente ao Orçamento estatal. Realmente, eu nunca havia pensando em uma decisão fundamentada na possibilidade de "repassar" o orçamento de despesas entre si, verificando qual a mais importante do ponto de vista da dignidade humana (Publicidade ou saúde? Embelezamento de praças ou escolas? Asfalto ou segurança?). As possibilidades são muitas a partir desse ponto de vista.. trata-se de mais uma aplicação da tão falada ponderação - neste caso não entre princípios, de forma específica, mas primordialmente entre interesses dos cidadãos e do próprio Estado. Muito bacana essa decisão.. até logo e parabéns, mais uma vez, pelas informações do blog.
Prezado Segundo,
Sem dúvidas o Estado tem plena responsabilidade e deve arcar com todas as despesas está correta a decisão do tribunal.
Porém discordo do judiciário em determinar o remanejamento de verbas do orçamento do executivo aprovada pelo legislativo, esta interferindo diretamente nos poderes, ele deve cumprir a decisão judicial de pagar as despesas porém sem este remanejamento específico.
O Estado deve pagar o tratamento de todos das doenças banais e raras e deslocamentos se necessário como mencionei acima, porém ele deve definir de onde vai disponibilizar os recursos, e como conhecemos nossos políticos dificilmente eles seram remanejados das verbas publicitárias.
Atte.Daniel Aragão
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