Editada em 2001, a LC 105/2001 foi motivo para a propositura de diversas ADIns.
Nenhuma julgada, até o momento, nem mesmo sem sede liminar, não obstante passados já mais de sete anos de sua edição.
Agora, com o fim da CPMF, e a regulamentação da disposição da LC 105 que determina o acompanhamento on-line e em tempo real da movimentação financeira de todo e qualquer cidadão (ops... Todo não. Os fiscais, servidores públicos, numa inversão sem precedentes dos princípios da publicidade e da intimidade que devem prevalecer nas esferas pública e privada, respectivamente, só por ordem judicial podem ter seus sigilos quebrados - LC 105, art. 3.º, § 1.º), outra ADIn foi proposta, tendo inclusive sido objeto de postagem anterior.
A propósito da mencionada postagem anterior, esclareço que não a elaborei para defender a quebra de sigilo. E nem para combatê-la. O propósito foi o de discuti-la. Por isso disponibilizei a inicial da ADI, e das informações da AGU.
Mas, agora oferecendo meu posicionamento a respeito, digo o seguinte:
A discussão em torno da quebra de sigilo bancário vem sendo travada, no Brasil, de forma inteiramente distorcida. Sofística até. Todo debate em torno dela começa com a afirmação de que "os direitos fundamentais são relativos"...
Ora, não se discute a relatividade desse direito, mas sim QUEM É COMPETENTE PARA FAZER ESSA RELATIVIZAÇÃO.
A questão, em suma, não é saber se o sigilo pode ser quebrado, mas quem pode fazê-lo. Esse é o verdadeiro debate subjacente à LC 105/2001.
E o STF, ao que tudo indica, SE FOR COERENTE, decidirá pela impossibilidade de quebra senão quando determinada por CPI ou pelo Judiciário. A decisão abaixo, recente, é indicação clara nesse sentido:
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MS 22801 / DF - DISTRITO FEDERAL
MANDADO DE SEGURANÇA
Relator(a): Min. MENEZES DIREITO
Julgamento: 17/12/2007 Órgão Julgador: Tribunal Pleno
Publicação DJE-047 DIVULG 13-03-2008 PUBLIC 14-03-2008EMENT VOL-02311-01 PP-00167
Parte(s) IMPTE.: BANCO CENTRAL DO BRASIL E OUTRO
ADV.: PROCURADOR-GERAL DO BANCO CENTRAL DO BRASIL
IMPDO.: TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO
Ementa Mandado de Segurança. Tribunal de Contas da União. Banco Central do Brasil. Operações financeiras. Sigilo.
1. A Lei Complementar nº 105, de 10/1/01, não conferiu ao Tribunal de Contas da União poderes para determinar a quebra do sigilo bancário de dados constantes do Banco Central do Brasil. O legislador conferiu esses poderes ao Poder Judiciário (art. 3º), ao Poder Legislativo Federal (art. 4º), bem como às Comissões Parlamentares de Inquérito, após prévia aprovação do pedido pelo Plenário da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do plenário de suas respectivas comissões parlamentares de inquérito (§§ 1º e 2º do art. 4º).
2. Embora as atividades do TCU, por sua natureza, verificação de contas e até mesmo o julgamento das contas das pessoas enumeradas no artigo 71, II, da Constituição Federal, justifiquem a eventual quebra de sigilo, não houve essa determinação na lei específica que tratou do tema, não cabendo a interpretação extensiva, mormente porque há princípio constitucional que protege a intimidade e a vida privada, art. 5º, X, da Constituição Federal, no qual está inserida a garantia ao sigilo bancário.
3. Ordem concedida para afastar as determinações do acórdão nº 72/96 - TCU - 2ª Câmara (fl. 31), bem como as penalidades impostas ao impetrante no Acórdão nº 54/97 - TCU - Plenário."
Será esse o motivo de a LC 105 até agora não ter tido sua validade apreciada em relação à autorização que dá ao fisco de quebrar diretamente o sigilo dos contribuintes, na via administrativa? Será que o STF, depois de vários anos deixando a Receita aplicar a lei à vontade, vai afirmá-la inconstitucional e modular os efeitos da decisão, para que sejam ex nunc?
Só a título ilustrativo, colo o que escrevi a respeito em meu "Processo Tributário", desde a primeira edição:
"2.5.2.4 Fiscalização e sigilo bancário
Ainda a propósito do conflito entre os poderes de fiscalização (necessários à efetividade dos princípios da isonomia e da capacidade contributiva), e os direitos individuais do contribuinte fiscalizado (intimidade, privacidade, propriedade, livre iniciativa etc.), questão de grande relevo diz respeito ao sigilo bancário e à sua quebra por autoridades administrativas, assegurada pela LC no 105/2001.
Defensores da validade da citada lei sempre procuram, propositalmente ou não, desviar o foco da questão. Defendem a relatividade do direito à intimidade, a inexistência de “direitos absolutos”, e a necessidade de serem prestigiados também os princípios da isonomia e da capacidade contributiva. Como existem sonegadores que se valem do sigilo bancário para ocultar rendimentos e não submetê-los à tributação, a quebra desse sigilo seria do interesse de todos os que não são sonegadores.
Na argumentação acima resumida, entretanto, há duas falácias evidentes.
A maior delas consiste em defender a validade da LC no 105/2001 utilizando argumentos relativos à possibilidade de quebra do sigilo bancário (há muito admitida pela doutrina, e pelo Poder Judiciário), quando na verdade o que se discute é quem está autorizado a efetuar essa quebra, se a Administração, a interessada nos dados, e por isso mesmo parcial, ou se o Poder Judiciário. É o que Irving Copi define como falácia da conclusão irrelevante, ou ignoratio elenchi, segundo a qual “um argumento que pretende estabelecer uma determinada conclusão é dirigido para provar uma conclusão diferente”.[1]
Se é certo que o direito ao sigilo não é absoluto, devendo ser conciliado com as atribuições de uma fiscalização a fim de prestigiar os princípios da capacidade contributiva e da isonomia, é igualmente certo que as atribuições dessa fiscalização também não são absolutas, e não podem suprimir o direito ao sigilo de que se cuida. A regra é o respeito ao sigilo, sendo exceção a sua quebra, em face de circunstâncias que justifiquem a atribuição de maior peso aos princípios que justificam a fiscalização que aos que protegem a intimidade do fiscalizado.
Por isso mesmo, é inconstitucional o dispositivo que praticamente torna esse sigilo inexistente, ao determinar que o Poder Executivo disciplinará (por decreto...) a periodicidade e os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços (LC no 105/2001, art. 5o). Com efeito, citado artigo não apenas “relativiza” o direito ao sigilo, possibilitando sua conciliação com outros à luz de um caso concreto. Não. Citado artigo transforma a “quebra” do sigilo em uma regra sem exceções.
E, mesmo que assim não fosse, o artigo padeceria de outra inconstitucionalidade (que também vicia o art. 6o da mesma lei complementar), porquanto deixa nas mãos da administração, parte interessada, e não do Poder Judiciário, em tese imparcial, o juízo acerca da presença das circunstâncias que justificam a quebra.
Precisas, sobre o tema, são as palavras de James Marins:
“Torna-se lugar comum se aludir à relatividade do sigilo ante ao interesse público, premissa essa que não pode ser negada. O que demanda análise mais detida é justamente a quem compete pronunciar-se pela existência, ou não, de interesse social relevante face a um caso concreto. Tal competência por expressa injunção constitucional está cometida ao Poder Judiciário como único órgão do Estado autorizado a sopesar os valores constitucionais da inviolabilidade de dados e das comunicações telefônicas diante de específica necessidade fundada no interesse público – demonstrado concretamente pela Fazenda Pública – para fins de seu momentâneo afastamento.
Ora, retirar tal competência do órgão institucionalmente investido da prerrogativa de agir de forma imparcial, a quem compete se manifestar concretamente a respeito dos direitos dos cidadãos, é esvaziar de forma temerária as atribuições constitucionais do Poder Judiciário, aquele que diz o direito. Atente-se que se caso fosse permitido à Administração Tributária a possibilidade de quebrar o sigilo dos cidadãos se estaria a centrar na mesma figura os papéis de parte e de juiz, o que não se admite em se tratando de respeito a direitos fundamentais da pessoa humana.”[2]
A outra falácia contida na argumentação resumida parágrafos acima consiste em associar a defesa do direito ao sigilo à defesa da prática impune de irregularidades. Parte-se da premissa, obviamente falsa, de que irregularidades são praticadas apenas pelos indivíduos fiscalizados, nunca pelas autoridades fiscalizadoras.[3] Trata-se de falácia perigosa, recorrente em regimes autoritários, não sendo demais lembrar a idéia que a Santa Inquisição fazia do direito de defesa: uma heresia, pois, se o acusado realmente fosse culpado, o direito de defesa representaria o direito de mentir, e, se o acusado fosse inocente, o direito de defesa pressuporia a inabilidade das sacrossantas autoridades julgadoras de descobrirem a verdade sozinhas.
Não se invoque, ainda na defesa dos dispositivos da LC no 105/2001, o chamado “sigilo fiscal”, segundo o qual não haveria propriamente uma “quebra” de sigilo, mas apenas uma “transferência” desse sigilo para o Fisco, que não poderia divulgar nada daí decorrente. Na verdade, o cidadão não tem direito à privacidade apenas em face de determinadas pessoas, mas sim em face de toda a coletividade. Não se pode afirmar, portanto, que a violação ao sigilo é válida porque perpetrada “apenas” pelas autoridades fazendárias. A propósito, direitos fundamentais como o da inviolabilidade de dados, do domicílio, de comunicações telefônicas etc. foram concebidos precisamente para serem opostos ao Poder Público, quem historicamente mais os violou. Além de tudo isso, paralelamente à LC no 105/2001, foi editada também a LC no 104/2001, que procedeu a alterações no art. 198 do CTN que praticamente aboliram o dever de sigilo fiscal, autorizando a “divulgação” de informações relativas a uma série de situações que enumera.
Merecem exame cuidadoso, também, as conclusões que a fiscalização tributária poderá tirar dos dados bancários do contribuinte.
A movimentação bancária certamente pode representar indício de capacidade contributiva. Uma pessoa física que em suas declarações afirma receber rendimentos anuais equivalentes a “x”, mas movimenta, no mesmo período, “10x”, possivelmente possui capacidade contributiva superior àquela pela qual está sendo tributada. Pode ter omitido rendimentos em sua declaração. Não se pode dizer, porém, que os “10x” movimentados sejam, todos, rendimentos tributáveis, a serem onerados pelo IRPF.
É comum contribuintes sacarem valores, utilizarem-nos parcialmente, e depositarem o restante novamente na mesma conta; transferirem valores de uma conta para outra; sacarem valores para realizar um negócio qualquer, o qual posteriormente não é concretizado, com o retorno integral dos valores para a conta correspondente etc. Esses fatos podem justificar, no todo ou em parte, a movimentação bancária não declarada, razão pela qual a fiscalização não pode simplesmente considerar cada depósito bancário como “rendimento”, para fins de cobrança do imposto de renda. É necessário comprovar que o depósito não declarado realmente equivale a um rendimento omitido na respectiva declaração.
O Tribunal Federal de Recursos, a propósito, através de sua Súmula 182, consolidou o entendimento segundo o qual “é ilegítimo o lançamento do imposto de renda arbitrado com base apenas em depósitos bancários”.
A Câmara Superior de Recursos Fiscais, última instância no julgamento de processos administrativos tributários federais, manifestou-se sobre a questão nos seguintes termos:
“IRPF – Omissão de rendimentos – Depósitos bancários – A existência de depósitos bancários em montante incompatível com os dados da declaração de rendimentos, por si só não é fato gerador de imposto de renda. O lançamento baseado em depósitos bancários só é admissível quando ficar comprovado o nexo causal entre cada depósito e o fato que represente omissão de rendimentos. Recurso provido.”[4]
Há quem entenda que, em face da Lei no 9.430/96, especialmente de seu art. 42, a mera existência de depósitos não declarados já poderia ser objeto de tributação pelo imposto de renda (no caso de pessoas físicas), ou pelos tributos incidentes sobre a renda e a receita (no caso de pessoas jurídicas), pois geraria uma presunção relativa de omissão de rendimentos ou de omissão de receitas, a ser elidida pelo contribuinte. Segundo o referido artigo, caracterizam omissão de receita ou de rendimento “os valores creditados em conta de depósito ou de investimento mantida junto a instituição financeira, em relação aos quais o titular, pessoa física ou jurídica, regularmente intimado, não comprove, mediante documentação hábil e idônea, a origem dos recursos utilizados nessas operações”.
Em face do citado artigo, o Conselho de Contribuintes proferiu alguns acórdãos alterando o entendimento antes ali já sedimentado:
“Insubsiste o lançamento realizado com base exclusivamente em depósitos bancários, sem vinculação deles à receita desviada, por ferir o princípio da reserva legal consagrado nos arts. 3, 97 e 142 do Código Tributário Nacional. O lançamento por presunção de omissão de receitas com base em depósitos bancários de origem não comprovada somente tem lugar a partir do ano calendário de 1997, por força do disposto no art. 42, da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996.”[5]
Não nos parece, contudo, que norma veiculada através de lei ordinária tenha a aptidão de alterar os critérios de fundamentação do lançamento tributário, por se tratar de decorrência do princípio constitucional do devido processo legal, essencial ao exercício do direito de defesa por parte do contribuinte.
Com efeito, muitas vezes é impossível produzir a prova negativa de que um determinado depósito não representa riqueza nova, mas sim valor já recebido e devidamente declarado e tributado. Merecem transcrição, sobre o assunto em questão, as reflexões de Raquel Cavalcanti Ramos Machado:
“É de se ressaltar, porém, que uma lei não pode mudar a necessidade de fundamentação concreta e comprovada da ocorrência do fato gerador, pois essa exigência decorre da própria natureza da fundamentação do ato administrativo, e ainda dos elementos necessários ao exercício do direito de defesa do contribuinte. E, mais, como será adiante desenvolvido, essa exigência decorre da natureza do lançamento tributário, que é atividade privativa da administração.
Aliás, importa lembrar que o exame dessa questão pelo extinto Tribunal Federal de Recursos deu-se exatamente à luz da natureza da atividade de lançamento e dos elementos necessários ao exercício do direito de defesa por parte do contribuinte:
‘Tributário. IR. Lançamento de Ofício. Presunção. Depósito Bancário. Sinais Exteriores da Riqueza.’
I – ‘É ilegítimo o lançamento de ofício do imposto de renda, tomando-se como renda simples existência de depósito bancário’ (EAC 72.975-RJ, rel. Min. Justino Ribeiro, 2a Seção, 04.11.82).
II – ‘A presunção hominis adotada pela autoridade lançadora pode ser elidida mediante a demonstração de que os indícios utilizados pela administração são insuficientes para evidenciar a ocorrência do fato gerador’, pois, ‘mera presunção não permite a instauração de processo fiscal’. (AMS 72.745-SP, rel. Min. Otto Rocha, 1a Turma, 25.08.75).
III – Os depósitos bancários, embora possam refletir sinais exteriores de riqueza, não caracterizam, por si só, rendimentos tributáveis.
IV – Precedentes. Remessa oficial desprovida (Ac. da 5a Turma do TFR – rel. Min. Pedro Acioli – REO 83606 – DJ 30/05/85 – EJ vol. 5579-01, p. 48)
Isso reforça a contestação de que, ainda que a Lei no 9.430/96 afirmasse que a mera existência de um depósito bancário, sem outro dado exterior que comprove omissão de rendimento, autoriza a tributação pelo Imposto de Renda e transfere o ônus de prova em contrário para o contribuinte, essa norma seria inválida.
Isso porque o fato meramente alegado, ou cuja ocorrência não é demonstrada, simplesmente não tem o condão de obrigar o contribuinte. Nesses casos, para não se submeter à exigência, em vez de tentar produzir prova muitas vezes de difícil realização, deve o contribuinte, em verdade, demonstrar o vício na formação do ato administrativo. Essa é a lição de Marco Aurélio Greco, ao afirmar que, nesses casos, o ônus do contribuinte:
‘(...) não é o de produzir prova negativa ou prova impossível, mas sim o de demonstrar que a exigência feita padece de vícios, dentre os quais pode se encontrar o de não ter a Administração realizado prova suficiente da ocorrência do fato gerador do tributo.
(...)
Não cabe ao contribuinte provar a inocorrência do fato gerador; incumbe ao fisco, isto sim, demonstrar sua ocorrência’ (‘Do Lançamento’, in Caderno de Pesquisas Tributárias no 12, São Paulo, Editora Resenha Tributária e Centro de Extensão Universitária, p. 170-171).”[6]
A partir da Lei no 9.430/96, portanto, pode-se até admitir um abrandamento no entendimento anterior do Conselho de Contribuintes, segundo o qual o Fisco teria de associar cada depósito a um fato específico que consubstanciasse omissão de rendimentos ou omissão de receitas. Esse abrandamento significa que o Fisco pode fazer esse mesmo lançamento com base nos depósitos bancários associados a outros indícios de omissão de rendimentos, sem ter de associá-los a cada um dos depósitos individualmente, desde que o somatório de todos esses indícios consubstancie acervo probatório suficiente para gerar uma presunção relativa e assim inverter o ônus da prova em desfavor do contribuinte. Isso porque a presunção criada, nesse caso, não decorrerá simplesmente dos depósitos, nem imporá ao contribuinte o ônus da prova impossível.
Esse entendimento, aliás, harmoniza-se com aquele sempre adotado pelo Poder Judiciário, segundo o qual o que estaria vedado ao Fisco seria o lançamento baseado exclusivamente em depósitos bancários, vedação que, por decorrer da Constituição e não das leis, continua existindo independentemente do que dispõe a Lei no 9.430/96.
Vale registrar, contudo, que esse não tem sido o pensamento da Secretaria da Receita Federal, sendo possível, também, apontar acórdãos do Superior Tribunal de Justiça que consideram “inaplicável” o entendimento cristalizado na Súmula 182 do TFR às situações posteriores à Lei 9.430/96 e à LC 105/2001.[7] É preciso cuidado com esse entendimento, não sendo possível estendê-lo a todo e qualquer caso concreto. Deve-se, ainda, ter muita cautela com suas repercussões no âmbito penal tributário, sob pena de violar-se o princípio constitucional da presunção de inocência, invertendo-se o ônus da prova no processo penal.[8]
Ainda a propósito do conflito entre os poderes de fiscalização (necessários à efetividade dos princípios da isonomia e da capacidade contributiva), e os direitos individuais do contribuinte fiscalizado (intimidade, privacidade, propriedade, livre iniciativa etc.), questão de grande relevo diz respeito ao sigilo bancário e à sua quebra por autoridades administrativas, assegurada pela LC no 105/2001.
Defensores da validade da citada lei sempre procuram, propositalmente ou não, desviar o foco da questão. Defendem a relatividade do direito à intimidade, a inexistência de “direitos absolutos”, e a necessidade de serem prestigiados também os princípios da isonomia e da capacidade contributiva. Como existem sonegadores que se valem do sigilo bancário para ocultar rendimentos e não submetê-los à tributação, a quebra desse sigilo seria do interesse de todos os que não são sonegadores.
Na argumentação acima resumida, entretanto, há duas falácias evidentes.
A maior delas consiste em defender a validade da LC no 105/2001 utilizando argumentos relativos à possibilidade de quebra do sigilo bancário (há muito admitida pela doutrina, e pelo Poder Judiciário), quando na verdade o que se discute é quem está autorizado a efetuar essa quebra, se a Administração, a interessada nos dados, e por isso mesmo parcial, ou se o Poder Judiciário. É o que Irving Copi define como falácia da conclusão irrelevante, ou ignoratio elenchi, segundo a qual “um argumento que pretende estabelecer uma determinada conclusão é dirigido para provar uma conclusão diferente”.[1]
Se é certo que o direito ao sigilo não é absoluto, devendo ser conciliado com as atribuições de uma fiscalização a fim de prestigiar os princípios da capacidade contributiva e da isonomia, é igualmente certo que as atribuições dessa fiscalização também não são absolutas, e não podem suprimir o direito ao sigilo de que se cuida. A regra é o respeito ao sigilo, sendo exceção a sua quebra, em face de circunstâncias que justifiquem a atribuição de maior peso aos princípios que justificam a fiscalização que aos que protegem a intimidade do fiscalizado.
Por isso mesmo, é inconstitucional o dispositivo que praticamente torna esse sigilo inexistente, ao determinar que o Poder Executivo disciplinará (por decreto...) a periodicidade e os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços (LC no 105/2001, art. 5o). Com efeito, citado artigo não apenas “relativiza” o direito ao sigilo, possibilitando sua conciliação com outros à luz de um caso concreto. Não. Citado artigo transforma a “quebra” do sigilo em uma regra sem exceções.
E, mesmo que assim não fosse, o artigo padeceria de outra inconstitucionalidade (que também vicia o art. 6o da mesma lei complementar), porquanto deixa nas mãos da administração, parte interessada, e não do Poder Judiciário, em tese imparcial, o juízo acerca da presença das circunstâncias que justificam a quebra.
Precisas, sobre o tema, são as palavras de James Marins:
“Torna-se lugar comum se aludir à relatividade do sigilo ante ao interesse público, premissa essa que não pode ser negada. O que demanda análise mais detida é justamente a quem compete pronunciar-se pela existência, ou não, de interesse social relevante face a um caso concreto. Tal competência por expressa injunção constitucional está cometida ao Poder Judiciário como único órgão do Estado autorizado a sopesar os valores constitucionais da inviolabilidade de dados e das comunicações telefônicas diante de específica necessidade fundada no interesse público – demonstrado concretamente pela Fazenda Pública – para fins de seu momentâneo afastamento.
Ora, retirar tal competência do órgão institucionalmente investido da prerrogativa de agir de forma imparcial, a quem compete se manifestar concretamente a respeito dos direitos dos cidadãos, é esvaziar de forma temerária as atribuições constitucionais do Poder Judiciário, aquele que diz o direito. Atente-se que se caso fosse permitido à Administração Tributária a possibilidade de quebrar o sigilo dos cidadãos se estaria a centrar na mesma figura os papéis de parte e de juiz, o que não se admite em se tratando de respeito a direitos fundamentais da pessoa humana.”[2]
A outra falácia contida na argumentação resumida parágrafos acima consiste em associar a defesa do direito ao sigilo à defesa da prática impune de irregularidades. Parte-se da premissa, obviamente falsa, de que irregularidades são praticadas apenas pelos indivíduos fiscalizados, nunca pelas autoridades fiscalizadoras.[3] Trata-se de falácia perigosa, recorrente em regimes autoritários, não sendo demais lembrar a idéia que a Santa Inquisição fazia do direito de defesa: uma heresia, pois, se o acusado realmente fosse culpado, o direito de defesa representaria o direito de mentir, e, se o acusado fosse inocente, o direito de defesa pressuporia a inabilidade das sacrossantas autoridades julgadoras de descobrirem a verdade sozinhas.
Não se invoque, ainda na defesa dos dispositivos da LC no 105/2001, o chamado “sigilo fiscal”, segundo o qual não haveria propriamente uma “quebra” de sigilo, mas apenas uma “transferência” desse sigilo para o Fisco, que não poderia divulgar nada daí decorrente. Na verdade, o cidadão não tem direito à privacidade apenas em face de determinadas pessoas, mas sim em face de toda a coletividade. Não se pode afirmar, portanto, que a violação ao sigilo é válida porque perpetrada “apenas” pelas autoridades fazendárias. A propósito, direitos fundamentais como o da inviolabilidade de dados, do domicílio, de comunicações telefônicas etc. foram concebidos precisamente para serem opostos ao Poder Público, quem historicamente mais os violou. Além de tudo isso, paralelamente à LC no 105/2001, foi editada também a LC no 104/2001, que procedeu a alterações no art. 198 do CTN que praticamente aboliram o dever de sigilo fiscal, autorizando a “divulgação” de informações relativas a uma série de situações que enumera.
Merecem exame cuidadoso, também, as conclusões que a fiscalização tributária poderá tirar dos dados bancários do contribuinte.
A movimentação bancária certamente pode representar indício de capacidade contributiva. Uma pessoa física que em suas declarações afirma receber rendimentos anuais equivalentes a “x”, mas movimenta, no mesmo período, “10x”, possivelmente possui capacidade contributiva superior àquela pela qual está sendo tributada. Pode ter omitido rendimentos em sua declaração. Não se pode dizer, porém, que os “10x” movimentados sejam, todos, rendimentos tributáveis, a serem onerados pelo IRPF.
É comum contribuintes sacarem valores, utilizarem-nos parcialmente, e depositarem o restante novamente na mesma conta; transferirem valores de uma conta para outra; sacarem valores para realizar um negócio qualquer, o qual posteriormente não é concretizado, com o retorno integral dos valores para a conta correspondente etc. Esses fatos podem justificar, no todo ou em parte, a movimentação bancária não declarada, razão pela qual a fiscalização não pode simplesmente considerar cada depósito bancário como “rendimento”, para fins de cobrança do imposto de renda. É necessário comprovar que o depósito não declarado realmente equivale a um rendimento omitido na respectiva declaração.
O Tribunal Federal de Recursos, a propósito, através de sua Súmula 182, consolidou o entendimento segundo o qual “é ilegítimo o lançamento do imposto de renda arbitrado com base apenas em depósitos bancários”.
A Câmara Superior de Recursos Fiscais, última instância no julgamento de processos administrativos tributários federais, manifestou-se sobre a questão nos seguintes termos:
“IRPF – Omissão de rendimentos – Depósitos bancários – A existência de depósitos bancários em montante incompatível com os dados da declaração de rendimentos, por si só não é fato gerador de imposto de renda. O lançamento baseado em depósitos bancários só é admissível quando ficar comprovado o nexo causal entre cada depósito e o fato que represente omissão de rendimentos. Recurso provido.”[4]
Há quem entenda que, em face da Lei no 9.430/96, especialmente de seu art. 42, a mera existência de depósitos não declarados já poderia ser objeto de tributação pelo imposto de renda (no caso de pessoas físicas), ou pelos tributos incidentes sobre a renda e a receita (no caso de pessoas jurídicas), pois geraria uma presunção relativa de omissão de rendimentos ou de omissão de receitas, a ser elidida pelo contribuinte. Segundo o referido artigo, caracterizam omissão de receita ou de rendimento “os valores creditados em conta de depósito ou de investimento mantida junto a instituição financeira, em relação aos quais o titular, pessoa física ou jurídica, regularmente intimado, não comprove, mediante documentação hábil e idônea, a origem dos recursos utilizados nessas operações”.
Em face do citado artigo, o Conselho de Contribuintes proferiu alguns acórdãos alterando o entendimento antes ali já sedimentado:
“Insubsiste o lançamento realizado com base exclusivamente em depósitos bancários, sem vinculação deles à receita desviada, por ferir o princípio da reserva legal consagrado nos arts. 3, 97 e 142 do Código Tributário Nacional. O lançamento por presunção de omissão de receitas com base em depósitos bancários de origem não comprovada somente tem lugar a partir do ano calendário de 1997, por força do disposto no art. 42, da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996.”[5]
Não nos parece, contudo, que norma veiculada através de lei ordinária tenha a aptidão de alterar os critérios de fundamentação do lançamento tributário, por se tratar de decorrência do princípio constitucional do devido processo legal, essencial ao exercício do direito de defesa por parte do contribuinte.
Com efeito, muitas vezes é impossível produzir a prova negativa de que um determinado depósito não representa riqueza nova, mas sim valor já recebido e devidamente declarado e tributado. Merecem transcrição, sobre o assunto em questão, as reflexões de Raquel Cavalcanti Ramos Machado:
“É de se ressaltar, porém, que uma lei não pode mudar a necessidade de fundamentação concreta e comprovada da ocorrência do fato gerador, pois essa exigência decorre da própria natureza da fundamentação do ato administrativo, e ainda dos elementos necessários ao exercício do direito de defesa do contribuinte. E, mais, como será adiante desenvolvido, essa exigência decorre da natureza do lançamento tributário, que é atividade privativa da administração.
Aliás, importa lembrar que o exame dessa questão pelo extinto Tribunal Federal de Recursos deu-se exatamente à luz da natureza da atividade de lançamento e dos elementos necessários ao exercício do direito de defesa por parte do contribuinte:
‘Tributário. IR. Lançamento de Ofício. Presunção. Depósito Bancário. Sinais Exteriores da Riqueza.’
I – ‘É ilegítimo o lançamento de ofício do imposto de renda, tomando-se como renda simples existência de depósito bancário’ (EAC 72.975-RJ, rel. Min. Justino Ribeiro, 2a Seção, 04.11.82).
II – ‘A presunção hominis adotada pela autoridade lançadora pode ser elidida mediante a demonstração de que os indícios utilizados pela administração são insuficientes para evidenciar a ocorrência do fato gerador’, pois, ‘mera presunção não permite a instauração de processo fiscal’. (AMS 72.745-SP, rel. Min. Otto Rocha, 1a Turma, 25.08.75).
III – Os depósitos bancários, embora possam refletir sinais exteriores de riqueza, não caracterizam, por si só, rendimentos tributáveis.
IV – Precedentes. Remessa oficial desprovida (Ac. da 5a Turma do TFR – rel. Min. Pedro Acioli – REO 83606 – DJ 30/05/85 – EJ vol. 5579-01, p. 48)
Isso reforça a contestação de que, ainda que a Lei no 9.430/96 afirmasse que a mera existência de um depósito bancário, sem outro dado exterior que comprove omissão de rendimento, autoriza a tributação pelo Imposto de Renda e transfere o ônus de prova em contrário para o contribuinte, essa norma seria inválida.
Isso porque o fato meramente alegado, ou cuja ocorrência não é demonstrada, simplesmente não tem o condão de obrigar o contribuinte. Nesses casos, para não se submeter à exigência, em vez de tentar produzir prova muitas vezes de difícil realização, deve o contribuinte, em verdade, demonstrar o vício na formação do ato administrativo. Essa é a lição de Marco Aurélio Greco, ao afirmar que, nesses casos, o ônus do contribuinte:
‘(...) não é o de produzir prova negativa ou prova impossível, mas sim o de demonstrar que a exigência feita padece de vícios, dentre os quais pode se encontrar o de não ter a Administração realizado prova suficiente da ocorrência do fato gerador do tributo.
(...)
Não cabe ao contribuinte provar a inocorrência do fato gerador; incumbe ao fisco, isto sim, demonstrar sua ocorrência’ (‘Do Lançamento’, in Caderno de Pesquisas Tributárias no 12, São Paulo, Editora Resenha Tributária e Centro de Extensão Universitária, p. 170-171).”[6]
A partir da Lei no 9.430/96, portanto, pode-se até admitir um abrandamento no entendimento anterior do Conselho de Contribuintes, segundo o qual o Fisco teria de associar cada depósito a um fato específico que consubstanciasse omissão de rendimentos ou omissão de receitas. Esse abrandamento significa que o Fisco pode fazer esse mesmo lançamento com base nos depósitos bancários associados a outros indícios de omissão de rendimentos, sem ter de associá-los a cada um dos depósitos individualmente, desde que o somatório de todos esses indícios consubstancie acervo probatório suficiente para gerar uma presunção relativa e assim inverter o ônus da prova em desfavor do contribuinte. Isso porque a presunção criada, nesse caso, não decorrerá simplesmente dos depósitos, nem imporá ao contribuinte o ônus da prova impossível.
Esse entendimento, aliás, harmoniza-se com aquele sempre adotado pelo Poder Judiciário, segundo o qual o que estaria vedado ao Fisco seria o lançamento baseado exclusivamente em depósitos bancários, vedação que, por decorrer da Constituição e não das leis, continua existindo independentemente do que dispõe a Lei no 9.430/96.
Vale registrar, contudo, que esse não tem sido o pensamento da Secretaria da Receita Federal, sendo possível, também, apontar acórdãos do Superior Tribunal de Justiça que consideram “inaplicável” o entendimento cristalizado na Súmula 182 do TFR às situações posteriores à Lei 9.430/96 e à LC 105/2001.[7] É preciso cuidado com esse entendimento, não sendo possível estendê-lo a todo e qualquer caso concreto. Deve-se, ainda, ter muita cautela com suas repercussões no âmbito penal tributário, sob pena de violar-se o princípio constitucional da presunção de inocência, invertendo-se o ônus da prova no processo penal.[8]
NOTAS
[1] Irving M. Copi, Introdução à Lógica, tradução de Álvaro Cabral, 2. ed., São Paulo: Mestre Jou, 1978, p. 86.
[2] James Marins, Direito Processual Tributário Brasileiro (Administrativo e Judicial), São Paulo: Dialética, 2001, p. 243.
[3] Talvez essa idéia nefasta tenha inspirado o redator do art. 3o, § 1o, da LC no 105/2001, segundo o qual “dependem de prévia autorização do Poder Judiciário a prestação de informações e o fornecimento de documentos sigilosos solicitados por comissão de inquérito administrativo destinada a apurar responsabilidade de servidor público por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido”. Segundo o citado parágrafo, como se vê, os integrantes do Poder Público, no que pertine às suas atribuições públicas, têm direito a que seu sigilo somente seja quebrado por meio do Poder Judiciário. Cidadãos, contudo, titulares do direito à individualidade, à intimidade e à privacidade, podem ter suas informações bancárias vasculhadas independentemente de interferência judicial. Sua inconstitucionalidade é ainda mais evidente que a dos demais dispositivos da citada lei, por violação ao princípio da isonomia, e inversão completa do princípio da publicidade.
[4] Ac. da 1a T. da CSRF – mv. – no 01-02.641 – Rel. Cons. Antonio de Freitas Dutra – j. 16.3.1999 – DOU-e 1 11.8.99, p. 12 – ementa oficial – Repertório IOB de Jurisprudência – 1a quinzena de outubro de 1999 – caderno 1 – p. 567.
[5] Ac. da 8a C. do 1o CC – no 108-06.870 – Rel. Cons. Nelson Lósso Filho; DOU I de 22.10.2002, p. 33 – Jurisprudência IR – IOB – Anexo ao Bol. 2/2003 – p. 1 e 2.
[6] Raquel Cavalcanti Ramos Machado, “A Prova no Processo Tributário: Presunção de Validade do Ato Administrativo e Ônus da Prova”, artigo publicado na Revista Dialética de Direito Tributário no 96, São Paulo: Dialética, setembro de 2003, p. 82 e 83.
[7] Nesse sentido: STJ, 1.ª T, REsp 792.812/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, j. em 13/3/2007, DJ de 2/4/2007, p. 242.
[8] Confira-se, a esse respeito, a coletânea coordenada por Hugo de Brito Machado (Sanções Penais Tributárias, São Paulo/Fortaleza: Dialética/ICET, 2006, p. 25, 422, 423 e passim),
Um comentário:
Sou advogada em São Luís, e estava a pesquisar alguns temas para estudo, eis que encontrei teu blog. Parabéns pela iniciativa; bom espaço de debates e reflexões.
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