segunda-feira, 31 de março de 2008

Três notas rápidas

Só três coisas, bem ligeiras.


A primeira: na mais recente RDDT (151), foi publicado o texto que escrevi com a Raquel, referido em postagem anterior, a respeito da (in)aplicabilidade do art. 739-A do CPC à execução fiscal.

A segunda: nessa mesma revista, foi veiculada importante decisão do STJ sobre o local da ocorrência do fato gerador do ISS, no AgRg no AI 903.224-MG.
Como se sabe, em face do art. 12 do DL 406/68, o STJ adotou interpretação inteiramente contra legem que, a pretexto de combater fraudes praticadas por alguns contribuintes, cria conflitos de competência praticamente insolúveis. É terrível: o prestador de serviços estabelecido em um Município presta serviços em outro, e termina sendo tributado pelos dois, um invocando a literalidade do art. 12 do DL 406/68, e o outro a jurisprudência do STJ. Se o pagamento for feito por fonte localizada em um terceiro Município, para completar, serão TRÊS cobranças do mesmo tributo. Se se recorre à ação de consignação em pagamento, cabível e adequada para casos assim, surgem problemas ligados à natureza continuativa de muitos serviços, e à própria Justiça competente, o que se complica no caso de Municípios situados em Estados diferentes.
Com o advento da LC 116/2003, esse problema foi resolvido. Tanto o das fraudes (com uma definição "ampla" e "econômica" de estabelecimento), como o do conflito de competência (reiterando-se que a tributação deve ocorrer no local onde situado o estabelecimento prestador do serviço, e ampliando-se as exceções a essa regra para mais casos em que é possível determinar onde o serviço é prestado). A questão, contudo, é que a jurisprudência nem sempre "enxerga" uma lei nova. Criado o precedente, o turbilhão do CTRL + C, CTRL +V às vezes faz com que o Judiciário não perceba que a lei mudou, e que aquela pilha enorme de processos para os quais se pensava já haver decisão pronta deve ser reexaminada.




Mas o STJ, em acórdão da lavra da Ministra Eliana Calmon, mostrou aguda percepção da mudança. Peço licença para transcrever, aqui, o comentário que eu havia feito ao art. 3.º da LC 116/2003 (no meu "Código Tributário Nacional - Anotações à CF/88, ao CTN e às LCs 87/96 e 116/2003"):



"Art. 3.º O serviço considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento prestador(1) ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador, exceto nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII, quando o imposto será devido no local:
(1) Local da ocorrência do fato gerador – Tendo em vista a natureza imaterial do “serviço”, muitas vezes é difícil determinar onde efetivamente o mesmo é prestado. Afinal, em questão judicial que percorre todas as instâncias recursais, o serviço de advocacia foi prestado em qual município? E o serviço de pesquisa, contratado pelo candidato à Presidência da República, em cuja feitura são ouvidas pessoas nos mais diversos municípios? Para resolver o problema, em atenção ao art. 146, I, da CF/88, o legislador complementar optou por eleger o local do estabelecimento do prestador do serviço com critério para determinar qual Município é competente para exigir o tributo correspondente (cf. D.L. 406/68, art. 12). “Cuida-se de opção do legislador, que instituiu uma ficção jurídica. O local da prestação do serviço, assim, está definido por ficção jurídica. Não se admite prova em contrário. O imposto, portanto, é devido ao Município em que tem estabelecimento o prestador, ou se não é estabelecido, onde tem domicílio. Ficaram, desta forma, resolvidas inúmeras questões que certamente seriam suscitadas, em casos como o de um advogado que tem escritório em São Paulo mas, eventualmente, presta serviços em Brasília, junto ao STJ ou ao STF.” (Hugo de Brito Machado, Comentários ao Código Tributário Nacional, Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 172).
Aproveitando-se dessa disposição, contribuintes se estabeleceram formalmente em distantes municípios do interior, nos quais não eram tributados, ou submetiam-se a uma tributação mais baixa, e não obstante mantinham estrutura na capital e efetivamente prestavam serviços na capital. Em vez de detectar a fraude, e considerar como estabelecimento o local onde efetivamente se mantinha uma estrutura necessária à prestação do serviço (e não aquele formalmente designado em contrato social), o STJ preferiu IGNORAR a regra estabelecida no art. 12 do D.L 406/68, determinando fosse devido o imposto no local onde efetivamente prestado o serviço: “Embora a lei considere local da prestação de serviço, o do estabelecimento prestador (art. 12 do Decreto-Lei nº 406/68), ela pretende que o ISS pertença ao Município em cujo território se realizou o fato gerador. É o local da prestação do serviço que indica o Município competente para a imposição do tributo (ISS), para que se não vulnere o princípio constitucional implícito que atribui àquele (município) o poder de tributar as prestações ocorridas em seu território. A lei municipal não pode ser dotada de extraterritorialidade, de modo a irradiar efeitos sobre um fato ocorrido no território de município onde não pode ter voga. (...)” (STJ, 1.ª T, REsp 41.867-4/RS, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJ de 25/4/1994). Restabeleceu, com isso, os conflitos que o legislador complementar tentou equacionar.
Merece transcrição, a propósito, a observação de Hugo de Brito Machado: “O Superior Tribunal de Justiça, a pretexto de evitar práticas fraudulentas, tem decidido que é competente para a cobrança do ISS o Município onde ocorre a prestação do serviço, sendo irrelevante o local em que se encontra o estabelecimento prestador. Melhor seria, porém, identificar a fraude, em cada caso. Generalizar o entendimento contrário à norma do art. 12 do Decreto-lei n. 406/68 implica afirmar sua inconstitucionalidade, o que não é correto, pois tal norma resolve, e muito bem, o conflito de competência entre os Municípios. A questão está em saber o que é estabelecimento prestador do serviço. O equívoco está em considerar como tal o local designado formalmente pelo contribuinte. Estabelecimento na verdade é o local em que se encontram os equipamentos e instrumentos indispensáveis à prestação do serviço, o local em que se pratica a administração dessa prestação. Adotado esse entendimento, as situações fraudulentas podem ser corrigidas, sem que se precise desconsiderar a regra do art. 12 do Decreto-lei n. 406/68” (Curso de Direito Tributário, 13.ed., São Paulo: Malheiros, p. 293)
O art. 3.º da LC 116/2003, dispositivo no qual a questão está atualmente tratada, reitera – contra a jurisprudência do STJ – que o critério para determinação do local da ocorrência do fato gerador é o local do estabelecimento prestador. Essa lei complementar, contudo, faz duas alterações importantes. Primeiro, define o que se deve entender por estabelecimento (art. 4.º), para fins de determinação do local no qual o ISS é devido. E, segundo, estabelece diversas exceções à regra de que o imposto é devido no local do estabelecimento. O DL 406/68 só previa como exceção a construção civil, enquanto a nova lei contempla as exceções dos 22 incisos de seu art. 3.º, todos serviços em relação aos quais é possível se determinar onde foram prestados.
Resta saber como o STJ decidirá a questão, relativamente ao período posterior à LC 116/2003, no que diz respeito aos casos não situados nas 22 exceções estabelecidas no art. 3.º dessa lei. Quando for o caso de aplicar o caput do citado artigo, data venia, a Corte não poderá continuar adotando o entendimento que sempre adotou, a menos que declare a inconstitucionalidade do dispositivo (e não nos parece que haja fundamento para isso)."


***


Tenho, em meu computador, arquivo que servirá, futuramente, para a segunda edição desse livro. Aliás, tenho o hábito de criar arquivo com o texto da próxima edição de cada livro que já escrevi, tão logo recebo a sua edição atualmente disponível, para poder, assim que lembrar ou tiver notícia de alguma coisa, proceder de imediato à atualização. Quando a edição esgota, não preciso ainda passar um bom tempo atualizando o texto, tarefa na qual muita coisa seria esquecida e perdida se fosse feita de uma só vez ao fim de cada edição.
Pois bem. Assim que recebi a notícia da decisão do STJ, apaguei o último parágrafo da anotação (que começa com "Resta saber...", e que propositalmente deixei marcado em azul na transcrição acima), e inseri o seguinte:
"Na edição anterior deste livro, chamávamos a atenção para esse ponto, vale dizer, para o fato de que a jurisprudência do STJ sobre o 'local da ocorrência do fato gerador do ISS' havia sido construída à luz do DL 406/68, e não da LC 116/2003. E tanto isso é verdade que, em momento mais recente, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça pronunciou-se nos seguintes termos: '(...) 1. Decisão agravada que, equivocadamente, decidiu à questão tão-somente à luz do art. 12 do Decreto-lei 406/68, merecendo análise a questão a partir da LC 116/2003. 2. Interpretando o art. 12, ‘a’, do Decreto-lei 406/68, a jurisprudência desta Corte firmou entendimento de que a competência tributária para cobrança do ISS é do Município onde o serviço foi prestado. 3. Com o advento da Lei Complementar 116/2003, tem-se as seguintes regras: a) o ISS é devido no local do estabelecimento prestador (nele se compreendendo o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas); e b) na falta de estabelecimento, no local do domicílio do prestador, exceto nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII do art. 3º da LC 116/2003. 4. Hipótese dos autos em que não restou abstraído qual o serviço prestado ou se o contribuinte possui ou não estabelecimento no local da realização do serviço, de forma que a constatação de ofensa à lei federal esbarra no óbice da Súmula 7/STJ. 5. Agravo regimental não provido.' (STJ, 2.ª T, AgRg no Ag 903224/MG, Rel. Min. Eliana Calmon, j. em 11.12.2007, DJ de 7.2.2008, p. 1)
Como se vê, o STJ não chegou a conheceer do recurso por considerar que, em face das peculiaridades do caso (forma como a questão fora tratada no acórdão recorrido e na petiçaõ de recurso especial), isso dependeria do reexame de fatos e provas, o que não pode ser feito no âmbito do Recurso Especial. Deixou claro, de qualquer sorte, que o entendimento a respeito do local da ocorrência do fato gerador do ISS, antes construído a partir do DL 406/68, há de ser, como apontávamos na primeira edição deste livro, diferente em razão do art. 3.º da LC 116/2003."

Mas, e o leitor pode estar se perguntando: - E não eram TRÊS notas rápidas? A segunda já nem foi tão rápida assim, e, além disso, onde está a terceira?
A terceira: Vagando (Não é navegando não. Eu estava vagando mesmo...) pela internet, pesquisando em decisões do Conselho de Contribuintes do Estado de Minas Gerais, encontrei decisão que julga questão interessante, e faz remissão a esse meu livro, de Anotações ao CTN. Confiram a página 8 do documento que pode ser encontrado em http://www.fazenda.mg.gov.br/empresas/conselho_contribuintes/acordaos/2007/2/17709072.pdf

Ah... Ainda tinha uma quarta coisa, que lembrei agora. Depois de correr um pouco no último sábado de manhã, fui à livraria Acadêmica da Rua Pereira Filgueiras, procurar o livro "Ponto de Mutação", que eu lhes havia encomendado e já havia chegado. Na livraria, vi outros lançamentos, e terminei comprando também o "A Virtude Soberana", de Dworkin, e "O Direito e os Direitos Humanos", de Michel Villey, ambos da Martins Fontes. Neste último, há crítica sem tamanho à questão dos Direitos Humanos. Achei tão absurdo que não consegui não comprar, até mesmo em função do renome do autor, e do respeito que ele certamente merece. Não era uma crítica feita por qualquer irresponsável que sai escrevendo na internet o que pensa que sabe depois de ler a Teoria Pura do Direito. E até por uma questão epistemológica: não devemos nos fechar às refutações. Afinal, como observa Popper (com quem concordo inteiramente), o científico não se caracteriza por ser refutável?
Pensando nisso, comprei o livro, e o estou lendo. Ocorre que, até agora, não consegui concordar com praticamente nada do que o autor disse. E o pior: acho que a refutação será até fácil. Mas, como prometi que seriam três notas (e aqui já estaria eu metendo uma quarta), e como não terminei ainda de ler o livro, deixarei para uma próxima vez.

2 comentários:

Anônimo disse...

Beleza... então posta aí um resumo dos principais argumentos e a sua refutação correspondente. Assim quem quiser nem precisa gastar mais comprando o livro...

Hugo de Brito Machado Segundo disse...

Edson,
Mesmo que eu postasse um resumo do livro e da refutação de suas idéias, isso não dispensaria alguém que quisesse aprender e se aprofundar no estudo de comprar o livro.
Ler Michel Villey jamais será "gastar grana", se é que você me entende.
Basicamente, ele entende que os direitos humanos não têm como ser atendidos por serem irrealizáveis de modo absoluto e por serem contraditórios (v.g., direito à liberdade de expressão x direito à honra). Ele parece ignorar o postulado da proporcionalidade como critério de superação dessas aparentes antinomias.