domingo, 2 de março de 2008

Saramago, Pontes de Miranda e outras notas

Desde que li "Todos os Nomes", de José Saramago, em 2003, fiquei impressionado com a observação desse autor em torno das coleções, e da verdade que certamente subjaz a ela.
Ei-la:

"Pessoas assim, como este Sr. José, em toda parte as encontramos, ocupam o seu tempo ou o tempo que crêem sobejar-lhes da vida a juntar selos, moedas, medalhas, jarrões, bilhetes-postais, caixas de fósforos, livros, relógios, camisolas desportivas, autógrafos, pedras, bonecos de barro, latas vazias de refrescos, anjinhos, cactos, programas de ópera, isqueiros, canetas, mochos, caixinhas-de-música, garrafas, bonsais, pinturas, canecas, cachimbos, obeliscos de cristal, patos de porcelana, brinquedos antigos, máscaras de carnaval, provavelmente fazem-no por algo a que poderíamos chamar angústia metafísica, talvez por não conseguirem suportar a ideia do caos como regedor único do universo, por isso, com as suas fracas forças e sem ajuda divina, vão tentando pôr alguma ordem no mundo, por pouco tempo ainda o conseguem, mas só enquanto puderem defender a sua coleção, porque chando chega o dia de ela dispersar, e sempre chega esse dia, ou seja por morte ou seja por fadiga do colecionador, tudo volta ao princípio, tudo torna a confundir-se."


Pois bem. Nesses últimos dias ocorreu algo que me fez visualizar essa afirmação de Saramago.
Faz algum tempo faleceu um irmão de um amigo meu, já bastante idoso. Não havia casado, e não tinha filhos. Deixou, contudo, vasta biblioteca, de livros de Literatura, História, Sociologia, Antropologia, Filosofia e assuntos afins. Algum tempo depois de sua morte, os demais irmãos partilharam o que mais lhes interessava, como alguns discos, moedas e selos antigos (primeiras coleções que se desordenaram, tal como descrito por Saramago).
Alguns poucos livros foram disputados e divididos entre os irmãos. Coleções mais bonitas e de obras clássicas. Mas muitos, muitíssimos, ficaram lá, abandonados. Não houve muito interesse na biblioteca. E esse meu amigo, que, como eu disse, era um dos irmãos, mas que gosta muitíssimo de livros, ficou com o encargo de dar cabo deles. Selecionaria os que quisesse ficar, e os demais seriam doados para uma biblioteca pública. Mas como esse meu amigo não tem mais muito espaço em sua (já grande e abarrotada) biblioteca, não tendo por isso onde guardar mais esses todos, pediu-me que fosse com ele até a casa de seu falecido irmão para que escolhesse alguns e o ajudasse a trazer todos de lá, pois a casa seria alugada e precisaria ser desocupada. Só faltavam os livros.
Era uma casa bonita, bastante antiga mas muito conservada. Já fazia então bastante tempo que seu proprietário havia falecido, de morte natural em idade avançada, pelo que meu amigo, seu irmão mais novo, não parecia triste em fazer essa seleção entre os seus haveres. O clima era mais de recordação e saudade do que propriamente de tristeza. Mas não deixei de pensar na eternidade, na infinitude do tempo e na pequenez de nossa existência, não só espacialmente como também temporalmente. Durante tanto tempo aquela casa e aqueles livros estiveram em ordem, como se tudo fosse durar para sempre, e estava agora ali vazia, com seus últimos livros sendo retirados. Outras pessoas a alugariam, e a ela dariam outro fim. Os discos, moedas, selos e livros cada um iria para um destino diferente. Alguns seriam lidos e muito bem aproveitados. Outros nem tanto. Alguns, talvez, acabem no lixo. E o mundo continua o seu fluxo...

Mas o propósito da postagem era até outro. Entre os livros, encontrei, e tive gentilmente doados a mim por esse amigo, diversos livros de muito valor. De Rui Barbosa, Oliveira Vianna, Oliveira Lima, Eça... Edições antigas, já quase seculares. Muitas esgotadas...
E, no meio delas, quem encontro? Josué Montelo. Seus diários. E, neles, uma referência exatamente a Pontes de Miranda, e aos fatos fantasiosos (ou "pequenas mentiras") que ele contava, objeto de postagem anterior.
Josué, aliás, com muita delicadeza e sutileza confirma que muitas dessas narrativas de Pontes eram, efetivamente, mentirosas. Mas o faz com muita classe. É conferir:
"Como se não bastasse tanto saber em Pontes de Miranda, há também a considerar a imaginação do mestre. Espantosa. Derramando-se. Transbordando. Tanto que ele próprio, conversando, transforma a fantasia momentânea em verdade recordada. Daí a convicção tranqüila com que diz aos amigos, na sua casa:
- Stálin? Nunca contei a vocês que, uma noite, já tarde, o telefone chamou, com insistência, no meu gabinete? Reluto em atender. Mas o chamado se repete. Afinal, aborrecido, tiro do descanso o aparelho , levo-o à orelha, e digo, numa voz contrariada: 'Alô?'. E do outro lado do fio, longe, num russo esplêndido, que me lembrou o de Puchkine, quem é que me fala?O homem mais poderoso da terra! Stalin" O próprio. E humilde. Para me pedir um favor pessoal, no auge de uma crise política! Sim, é verdade: no auge de uma crise política!
Inverossímil, não? Mas tem mais. Pontes olha os amigos, sorri; depois arremata, sinceramente desvanecido:
- Imaginem vocês o que tinha acontecido. Uma coisa imperdoável. Stalin me havia escrito uma longa carta sobre o Código Civil da Rússia, e eu, com tantos pareceres a preparar, me tinha esquecido de lhe dar uma resposta!
Esperem.
Lembrem-se de que Malraux, o grande Malraux, nos seus Anti-memoires, reproduz, quarenta, cinqüenta anos depois, uma conversa de seu pai com seu tio-avô sobre Nietzsche, longa, pormenorizada - a que ele, Malraux, nunca assistiu.
Entretanto, o nosso Pontes, aquele mesmo que ali está, discorrendo sobre Hermes Lima, também foi amigo de Einstein, com quem se correspondeu em alemão sobre a teoria da relatividade. Por que Pontes também sabe física, e é um grande matemático.
E o mais surpreendente ainda é que, depois de ter contado o fato espantoso, Pontes de Miranda foi ao seu gabinete, e veio de lá, tranqüilo, senhor de si - com a carta de Einstein na mão!
Bato palmas fortes, entusiásticas, quando o mestre conclui o seu discurso. E digo a Afonso Arinos, que sentou ao meu lado:
- Este nosso Pontes de Miranda é tão assombroso, tão inverossímil, que só pode ser uma invenção do próprio Pontes de Miranda." (Josué Montello. Diário da Noite Iluminada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 115/116)

Ora, ora.... Dizer que Pontes transformava a fantasia momentânea em verdade recordada é o mesmo que dizer, ainda que com todo o donaire, que ele mentia como uma criança na fantasiosa fase dos três anos.

2 comentários:

Anônimo disse...

Que postagem interessante!!! Muito boa a variedades dos temas que abordas. Parabéns.

Heitor Nogueira disse...

Gostei muito da referência à Saramago.
Leio o blog já há algum tempo.
E o que me faz voltar é a linguagem.
A maneira leve de se tratar os assuntos.
Evitando-se o hermetismo jurídico
[que por vezes é inevitável!]
A propósito, indico estas linhas que escrevi sobre Saramago no meu blog:
http://esteticaliteraria.blogspot.com/2009/03/em-1998-jose-saramago-tornou-se-o.html
Forte Abraço!